Diretor do Serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian - 19 de Outubro de 2011
Muito bom dia Sr. Reitor, Sr. Director, senhora e senhores membros da mesa, minhas senhoras e meus senhores
É com muito gosto que participo nesta comemoração dos 100 anos da Faculdade de Ciências; 100 anos é uma data humana, fomos nós que inventamos os séculos, os séculos não existem fora das nossas culturas como sabem mas é uma data bonita, boa para se pensar no futuro como já aqui foi muito bem referido por todos os intervenientes; a prova de que acreditamos no futuro (foi este o tema dado pelo Sr. Director) é que estamos aqui congregados; se não acreditássemos no futuro não estaríamos hoje na Faculdade de Ciências. Pediram-me uma reflexão sobre um tema que eu gosto muito, o papel da ciência no desenvolvimento material e imaterial da sociedade e do homem e eu trago-vos aqui exactamente uma reflexão que eu penso que seja adequada a uma memória de 100 anos e a uma perspectiva de pelo menos 100 anos, mas naturalmente muito mais. Tenho só uma imagem, que é uma belíssima fotografia tirada pela tripulação da nave Apolo 8 em Dezembro de 1968, um ano também crítico no século XX; uma fotografia tirada por seres humanos: é o nascer da Terra sobre a Lua. A nave não alunou, estava a circular sobre a superfície da Lua, que se vê aqui um bocadinho a castanho, e eles fotografaram pela primeira vez esta bela imagem do nosso planeta que como nós vemos é azul, tem núvens, tem continentes, não tem fronteiras. Penso mesmo talvez este seja um dos mais belos ícones do século XX e por isso pedia quando não quiserem olhar para mim ou para mais ninguém, olhem para a fotografia e pensem um pouco, porque foi preciso muito para que a fotografia fosse possível, foi preciso que se circum-navegasse o globo para se ter a certeza da dimensão da terra e que ela era mesmo redonda, foi preciso tirar a terra do centro do universo, colocar lá o sol, foi preciso inventar instrumentos para descobrir outras estrelas que até aí nunca se tinham visto e portanto aquela ideia de que o saber não estava só nos livros do passado foi fundamental, foi preciso inventar uma matemática nova, (o cálculo) para que isto tudo acontecesse e foi sobretudo preciso inventar uma maneira de publicar e tornar público este conhecimento em todos os pontos da Terra.
Ora bem, não há dúvida nenhuma que nos últimos 100 anos a população mundial aumentou de 4 vezes, o crescimentos económico de 22 vezes, o consumo de combustíveis fosseis de 14 vezes, portanto o século XX foi realmente um século impressionante, nós hoje temos sete mil milhões de pessoas no planeta mas só sobrevivemos porque temos um sistema infraestrutural, económico, de comunicação e transporte baseado em conhecimentos científicos de base fundamental. Se acontecesse alguma coisa grave, por exemplo se ficássemos de repente sem computadores e sem redes nós não conseguíamos suportar esta população no planeta, voltaríamos com certeza a uma situação em que existiria apenas a metade desta população (três milhões e quinhentos mil habitantes) que era aquilo que existia na Terra em 1950 com as tecnologias e organização da altura.

Temos de criar os mecanismos de resolução dos problemas que enfrentamos no presente. Há uma frase de Albert Einstein que é magnífica em que ele diz que os problemas importantes que temos não podem ser resolvidos ao mesmo nível de pensamento de quem os criou, ou seja, nós temos que criar mais conhecimento e melhores maneiras de integrar esse conhecimento nas decisões que tomamos para, conseguindo um nível mais alto de complexidade, tentar resolver os problemas existentes. Não, há, pois, duvida nenhuma de que a ciência é muito importante para o futuro e para o presente. Gostava de relembrar aqui assim duas conclusões fundamentais da ciência moderna, duas conclusões fantásticas da ciência que condicionam a nossa visão do mundo: a primeira (uma grande conquista do século XIX) é a de que não é preciso invocar nenhum poder sobrenatural para explicar qualquer fenómeno na natureza ou no universo. Naturalmente, nós sabemos que há coisas que não conseguimos hoje explicar mas também sabemos que não precisamos de invocar nenhum poder sobrenatural porque temos um método, a investigação, para fazer progredir o conhecimento. Mas pode-se pôr a questão: isso quer dizer que não há lugar para o sobrenatural? Não, naturalmente há lugar. No infinitamente grande a ciência não pode responder à questão do que é que está para lá das fronteiras do universo, porque não é observável, e portanto não é uma questão científica. Nenhum cientista pode fazer afirmações desse tipo (e quando alguns cientistas fazem destas afirmações estão a fazê-las enquanto não cientistas, usando abusivamente da sua autoridade científica como ela se estendesse à filosofia ou aos outros domínios do conhecimento). Não se pode modelar nada que não se observe, e isso é válido tanto no infinitamente grande como também no infinitamente pequeno (tão perto de nós quanto possível), ou seja, dentro de nós, da nossa consciência; a ciência presentemente não pode dar resposta abaixo da dimensão de Planck (cerca de 10-35 metros) pois se nós conseguíssemos acelerar partículas para observar a essa distância tão curta, essas partículas tinham uma energia tal que se tornavam, a essa dimensão, buracos negros! Aceitamos, pois, fronteiras na própria capacidade de investigação, portanto no infinitamente grande e no infinitamente pequeno há eventualmente lugar para o sobrenatural; o sobrenatural pode ser interpretado como uma intuição, como fé religiosa, ou como a confiança dos outros seres humanos, etc, mas o que é um facto é que no universo conhecido os fenómenos são todos explicáveis através das leis da natureza e das suas aplicações.
A segunda grande conclusão fundamental da ciência moderna (e que é uma conclusão do século XX) é a de que não há nenhuma lei natural para a vida; a vida obedece às mesmas leis naturais da outra matéria que não é viva (ou que nós dizemos que não é viva) não há vitalismos, não há uma substância vital especial, a vida acontece de acordo com as leis da natureza. Acontece da maneira e nas condições que tem de acontecer; e por isso vemos que esta procura de vida noutros astros é perfeitamente legítima. Sempre que nós atingimos um novo patamar de conhecimento percebemos qual é o nível das dúvidas que se levantam; por exemplo, o aparelho intelectual que foi desenvolvido no século XIX para observar e para conseguir o enorme avanço de hoje, que era baseado em três tipos de grandes preocupações e de grandes teorias, o determinismo, o reducionismo e o dualismo não “funciona” bem no presente. O determinismo é a conservação da informação (antes e depois do fenómeno a informação conserva-se); e as leis da natureza são deterministas neste sentido. O reducionismo traduz-se na possibilidade de usar a linguagem matemática para descrever a natureza. Provavelmente temos de inventar uma nova matemática hoje, tal como no século XVII se inventou o cálculo para descrever o movimento; se nós hoje temos um outro tipo de problemas, que envolve padrões de complexidade, temos naturalmente que inventar uma nova matemática para o descrever. Finalmente o dualismo que se baseia na separação do observador em relação ao objecto observado; acontece que nós sabemos que esta separação não pode ser completa, nós sabemos que o facto de considerarmos o mundo como complexo é exactamente a impossibilidade de separar o observador do objecto, o sistema do contexto, o ser vivo do ambiente; o ser vivo sem o seu ambiente morre! O que isto nos sugere é que vivemos num mundo desordenado, em que não há sentido na evolução. A ordem que nós vemos é aquela que é proposta por nós (e é bom que seja uma ordem boa), e por outro lado somos nós que temos que criar um sentido para a vida, como sempre foi! E é bom que criemos um bom sentido, porque se não o criamos sofreremos um pior. O mundo está sempre a mudar como sabemos. A crise que estamos a viver agora é muito complicada, que começou por ser uma crise financeira, depois tornou-se uma crise de crédito e passou a ser uma crise industrial, uma crise do emprego uma crise da procura, e estamos agora numa crise fiscal que questiona os próprios estados soberanos. Mas as “piores” crises de todas as que estamos a viver são as que servem de contexto àquelas, no quadro da deriva intelectual e real do século XX e que são crises de natureza cognitiva --- a crise da natureza, a crise da ciência, a crise dos universais e a crise da soberania.
Sempre se falou na natureza mas hoje em dia fala-se muito menos dela, o lugar que a natureza ocupava passou a ser preenchido pela palavra ambiente; nós preocupamo-nos sobretudo com o ambiente e esta mudança da natureza para o ambiente não é neutra em termos dos valores. Porquê? Porque a natureza era o cenário no qual nós vivíamos, nós podíamos inclusivamente destruir um bocado da natureza que a natureza recompunha-se, era formalmente um cenário. Era imutável. O ambiente já não funciona assim, o ambiente já não é um cenário que se desenrola para nós vermos a peça, o cenário é o palco em que nós representamos e não há sequer uma peça, não há autor, nós estamos a representar sem saber qual é o fim e temos até a noção de que podemos estragar o palco sem sabermos como o reparar. Esta mudança da natureza para o ambiente, esta crise da natureza, traz-nos uma sensação de angústia, uma angústia relativamente ao presente e sobretudo face ao futuro.

A crise da ciência dá-se com o emergir da tecnociência: a maneira de fazer ciência que surge a partir da segunda grande guerra e que se tornou dominante, que é uma ciência virada para as aplicações tecnológicas. Mas a tecnociência é necessária, é eficaz, se não fosse a tecnociência não tínhamos 7 mil milhões de habitantes no mundo nem provavelmente conseguiríamos alimentar os nove mil milhões que vamos ter segundo as projecções demográficas em 2050; se a tecnociência não é má, qual é o problema da tecnociência? É que a tecnociência é puxada pela tecnologia, é puxada pelo mercado e está preocupada com o curto prazo. Transformou-se numa corrida e nem sequer na investigação mais fundamental se consegue fugir a esta pressão dos indicadores do financiamento, das publicações e citações, do número de doutorandos, etc. Uma corrida tão terrível que nós muitas vezes pensamos onde haverá lugar para um bocadinho de ciência movida pela curiosidade, que é a ciência que tem produzido as ideias que nos têm salvo até hoje. Esta crise da ciência introduz a noção de curto prazo, do imediato, do termos de produzir resultados, de “rat-race” como os estudantes por toda essa Europa a designam. A crise dos universais é uma crise muito funda: os direitos que tínhamos eram universais, eram sagrados, eram permanentes, eram imutáveis, nós tínhamos esses direitos só porque nascíamos e o Estado tinha por dever garanti-los. É essa a razão da divisão dos poderes. O universal é também uma palavra que se diz menos, foi substituída pelo global, o global está por toda a parte, mas esta passagem da palavra universal para o global também não é neutra. No global não há direitos, há contratos; e os contratos têm que ser negociados, têm que ser conquistados, nós temos de demonstrar capacidade, temos que ser competitivos, andamos continuamente a tentar que haja uma utilidade para nós próprios senão somos deitados fora. Esta mudança do universal para o global também traz aqui uma noção de opressão. Onde estão os nossos direitos? É o Estado que os garante mas o Estado está também a ser alvo de um ataque terrível que transporta consigo uma crise de soberania.
A soberania foi substituída pela palavra governança, (que não quer dizer mais do que coordenação à distância) que significa coordenação por cima das fronteiras nacionais, fazendo surgir actores políticos que nos coordenam por cima das fronteiras nacionais e sobre quem não possuímos qualquer poder democrático.
Em resultado de todas estas transições experimentamos um vórtice do curto prazo, que é terrível porque oculta o próprio futuro. Passámos a ter medo do futuro, é como se o futuro já tivesse sido privatizado, já tivesse deixado de ser património comum da humanidade. Isto quer dizer que é preciso uma nova cultura. É preciso uma nova narrativa, pois é fundamental numa nova cultura não a ideia de progresso (que significava: mais é melhor) mas uma outra que a substitua ou reinterprete. Precisamos de novos valores, primeiramente do valor construtivo do futuro. Quando se muda é preciso saber o que se deve mudar e saber o que é que deve ficar constante. E porque não iremos buscar também valores como a beleza, a felicidade, etc?
Outros valores igualmente muito importantes são os da ética da interrogação (o de perguntamos porquê?). Que significam uma coisa tão simples: valorizar o espírito crítico. A interrogação sobre o universo, sobre a sociedade, sobre nós próprios, (foi esta interrogação sobre a sociedade, sobre o ser humano e sobre o universo que motivou exactamente o aparecimento das ciências sociais, das humanidades e da ciência moderna) é aquilo de que uma universidade e uma faculdade de ciências devem ser necessariamente guardiões. Temos igualmente de criar uma nova cultura económica. E termos ainda que valorizar a sociedade civil pois não é só propriamente o conhecimento que interessa, mas é também e sobretudo o reconhecimento, o reconhecimento do outro como interlocutor, o outro também é fonte de conhecimento. O que nos deve mover é a vontade de criação de uma sociedade fraterna, solidária, planetária (ou mesmo extra planetária) e essa sociedade tem que se preocupar com direitos (um problema político) e para que isso aconteça naturalmente precisamos de muito mais ciência sobretudo de muita ciência motivada pela curiosidade --- claro que não vamos pôr de lado a ciência puxada pela tecnologia, nós precisamos dela como do pão para a boca, a próxima revolução tecnológica vai ser com certeza baseada em tecnologias com forte intervenção na ciência fundamental. Para tal, precisamos das grandes ideias fundadoras, daquelas ideias que quando surgem parecem não ter aplicação nenhuma mas depois passado cinquenta anos, às vezes trinta, dão azo a que haja uma nova linha de desenvolvimento e que novos seres humanos possam surgir e desenvolver-se. Só assim surgirá uma nova cultura, uma cultura integral virada para o longo prazo. Haverá com certeza um lugar muito importante para a educação mas para uma educação que não introduza novas estratificações porque o problema hoje não é um problema só de liberdade… é um problema de igualdade. Vimos no século XX que a liberdade sozinha não funciona, é uma presa muito fácil, a liberdade sozinha serve para muito pouco de bom; precisa de ser resguardada e, assim, a grande defesa da liberdade é a igualdade. Além de que o crescimento económico tem a ver com os índices de igualdade: o grande desafio do século XXI vai ser o da igualdade. Neste mundo de incertezas, onde temos continuamente de criar novos patamares de complexidade em termos do pensamento para sobreviver, há que, como mensagem para os próximos 100 anos, entender que contra a ciência não vai haver futuro. É esta a única certeza que podemos ter hoje!
Muito obrigado.