Maria de Sousa morreu na madrugada do dia 14 de abril de 2020, vítima da atual epidemia COVID19. Surgem agora por toda a parte notícias e depoimentos que ilustram bem o quanto ela é recordada no mundo da ciência, na academia e no país em geral. O Departamento de Patologia e Imunologia Molecular do ICBAS presta-lhe também a sua homenagem, salientando alguns dos aspetos mais marcantes da sua vida. Em primeiro lugar ela ficará recordada como uma das maiores cientistas da sua geração. Uma cientista que sempre esteve à frente do seu tempo. Muito jovem teve a coragem de abandonar o país e a família para se dedicar totalmente à ciência, foi extremamente perseverante em terreno hostil (não era fácil uma jovem mulher portuguesa nos anos 60 impor-se perante patologistas e imunologistas de reconhecido nome) mas foi capaz de ver aquilo que os observadores mais experientes não tinham visto, o que lhe valeu ter realizado muito cedo na vida a sua grande descoberta sobre as áreas T nos gânglios linfáticos. Com o seu espírito visionário veio a desenvolver novas ideias e desafiou dogmas estabelecidos propondo uma nova teoria sobre o sistema imunológico que marcou, no final dos anos 70, o início de uma nova área de investigação sobre a inter-relação entre o metabolismo do ferro e as células do sistema imune. Nessa altura, em 1985, a sua coragem trouxe-a de novo para Portugal onde se fixou no ICBAS, tendo criado e dirigido o primeiro Mestrado que houve formalmente em Portugal, o Mestrado de Imunologia numa altura em que Bolonha ainda nem projeto era. Nele formaram-se cientistas que hoje se afirmam um por todo o mundo, a começar pelas instituições mais credíveis de investigação que existem em Portugal. “Ensinar ciência é a melhor forma de aprender e avançar” É por isso necessário desenvolver “a universidade sem paredes”, pois onde há perguntas bem-feitas e formas inteligentes de procurar as boas respostas, isso é a universidade ser universidade.
Foi com este espírito que, em 1996, coordenou a fusão de três mestrados para criar o Programa Graduado de Biologia Básica e Aplicada que é conhecido em todo o mundo da ciência básica na área da biologia pelo nome GABBA. Atraíu estudantes, professores e investigadores de todo o mundo, sendo imagem de marca da qualidade na Universidade em Portugal. Dirigiu o Departamento de Patologia e Imunologia Molecular de 2002 a 2004, dando aí continuidade a todo um trabalho de investigação sobre a hemocromatose, uma doença genética de sobrecarga de ferro particularmente frequente no norte do país e que foi o primeiro modelo de doença humana onde se demonstrou a relação dos linfócitos com a sobrecarga de ferro. Influenciou nessa altura múltiplos grupos de grande mérito internacional em sociedades científicas da área da biologia do ferro, que passaram a introduzir o tópico em todas as suas reuniões científicas. Como ficou claro nas diversas homenagens que foram feitas a Maria De Sousa em 2018, incluindo a celebração do 40º aniversário do seu postulado, ela teve a felicidade de assistir em vida à confirmação das suas teorias e à consolidação e progressão de vários grupos a trabalhar em ferro e sistema imune.
Mas a sua projeção foi muito mais para além das suas descobertas científicas. Ela foi das mais aguerridas defensoras e lutadoras pelo desenvolvimento da Ciência em Portugal e pela inovação no ensino Universitário pós-graduado sem, no entanto, se ter preocupado alguma vez com os cargos ou títulos. Mas a sua liderança impôs-se naturalmente pelos seus princípios, ideias fortes e atitudes de coragem. Na docência foi altamente inovadora no modo de ensinar e divulgar a ciência. Como mentora foi exigente, dura quando necessário, e sempre presente no que toca a dar apoio e confiança. Como cidadã interventiva influenciou toda uma geração de investigadores.
A divulgação da ciência e da cultura por toda a população era, para Maria de Sousa, um sinal de maioridade e de progresso, sobretudo quando, para isso, se usavam formas de comunicação simples e práticas, mas marcantes. Com ela nasceu o lema “Porto, cidade da ciência” que se divulgou entra toda a cidade através de cartazes colocados nas ruas e nos autocarros e através da vontade de pôr em circulação um autocarro que circulasse entre todas as Escolas do grande Porto, transportando professores e alunos de umas para as outras e servindo, ao mesmo tempo, de ponto de encontro e de discussão entre pares.
Para além do seu perfil de cientista, académica e cidadã, ela foi uma pessoa de cultura. Tinha um enorme gosto pela música, pela literatura e pelas artes em geral, ela própria sendo autora de extraordinários poemas e textos de reflexão. Os músicos da orquestra da cidade, os atores do Teatro Aberto, os escritores conheciam-na. Os museus recebiam-na com carinho. Cultivou a comunicação escrita como poucos, como ficou plasmado num dos seus últimos livros a que chamou “Meu Dito, Meu Escrito”. A sua escrita científica era também especial. Qualquer um que queira hoje rever o que foram os seus ensinamentos vai deparar-se com textos absolutamente extraordinários e quase poéticos. Ciência no seu melhor! Nunca é demais ler os escritos de Maria De Sousa e refletir sobre eles.
Graça Porto, Professora Catedrática Convidada
Carlos Lopes, Professor Catedrático Jubilado
e Fátima Gärtner, Diretora do Departamento de Patologia e Imunologia Molecular