Resumo: |
A guerra cria um contexto singular de oportunidades para o crime e a pesquisa dedicada a este fenómeno tem indicado que as forças armadas envolvidas nesses conflitos exercem, por vezes, violências para lá das leis e costumes da guerra. A guerra colonial que Portugal travou em África (1961-1974) não foi exceção, pese embora a ratificação das quatro Convenções de Genebra a 14/03/1961. A violência sexual, o deslocamento forçado de populações, a tortura e execução de prisioneiros e os massacres constituem algumas dessas ações que a administração da justiça portuguesa da época não ignorou. Já existem algumas investigações centradas na análise de crimes que terão sido cometidos durante aquele conflito. Algumas examinam massacres cometidos pelas forças envolvidas; outras exploram crimes do foro militar e contra o Estado, como a deserção e outras condutas de desobediência. Nenhuma se debruçou ainda sobre crimes comuns que terão sido perpetrados por membros das Forças Armadas Portuguesas cujos processos-crime decorreram no âmbito dos tribunais militares territoriais de Angola, de Moçambique e da Guiné-Bissau (TMTAMG). Falta, por isso, uma investigação sistemática focada no panorama geral desses crimes. Uma pesquisa preliminar no Arquivo Histórico Militar (AHM) permitiu apurar que foram instaurados numerosos processos durante a guerra, após terem sido apresentadas queixas-crime, que determinaram o início das respetivas investigações criminais. Os crimes indiciados são diversos, tais como homicídios, violações, agressões, ofensas corporais, abuso de autoridade, destruição de propriedade, agressões, furtos e roubos, entre outros.
Partindo deste acervo, este projeto pretende indagar como é que esses factos criminosos, alegadamente cometidos por combatentes das FAP, foram interpretados pelos TMTAMG, ao longo da guerra colonial (1961-1974). Trata-se de uma pesquisa documental, focada nos processos-crime disponíveis no AHM com recurso a uma metodologia mista: uma análise socio  |
Resumo A guerra cria um contexto singular de oportunidades para o crime e a pesquisa dedicada a este fenómeno tem indicado que as forças armadas envolvidas nesses conflitos exercem, por vezes, violências para lá das leis e costumes da guerra. A guerra colonial que Portugal travou em África (1961-1974) não foi exceção, pese embora a ratificação das quatro Convenções de Genebra a 14/03/1961. A violência sexual, o deslocamento forçado de populações, a tortura e execução de prisioneiros e os massacres constituem algumas dessas ações que a administração da justiça portuguesa da época não ignorou. Já existem algumas investigações centradas na análise de crimes que terão sido cometidos durante aquele conflito. Algumas examinam massacres cometidos pelas forças envolvidas; outras exploram crimes do foro militar e contra o Estado, como a deserção e outras condutas de desobediência. Nenhuma se debruçou ainda sobre crimes comuns que terão sido perpetrados por membros das Forças Armadas Portuguesas cujos processos-crime decorreram no âmbito dos tribunais militares territoriais de Angola, de Moçambique e da Guiné-Bissau (TMTAMG). Falta, por isso, uma investigação sistemática focada no panorama geral desses crimes. Uma pesquisa preliminar no Arquivo Histórico Militar (AHM) permitiu apurar que foram instaurados numerosos processos durante a guerra, após terem sido apresentadas queixas-crime, que determinaram o início das respetivas investigações criminais. Os crimes indiciados são diversos, tais como homicídios, violações, agressões, ofensas corporais, abuso de autoridade, destruição de propriedade, agressões, furtos e roubos, entre outros.
Partindo deste acervo, este projeto pretende indagar como é que esses factos criminosos, alegadamente cometidos por combatentes das FAP, foram interpretados pelos TMTAMG, ao longo da guerra colonial (1961-1974). Trata-se de uma pesquisa documental, focada nos processos-crime disponíveis no AHM com recurso a uma metodologia mista: uma análise sociológica interpretativa dos discursos com o objetivo de captar os fundamentos estruturadores das narrativas que compõem os diversos documentos representativos da marcha processual, apoiada por uma análise estatística descritiva e inferencial com o propósito de organizar, sintetizar, descrever e comparar os aspetos relevantes do conjunto de dados. A equipa multidisciplinar do projeto reúne todas as competências para desenvolver esta pesquisa: o conhecimento excecional em relação aos dados disponíveis no AHM, os saberes nas áreas do direito penal, internacional e militar, da criminologia, da sociologia, da estatística e da história da guerra colonial e das FAP, bem como a experiência na pesquisa empírica de dados relacionados com a guerra colonial, com diversos tipos de violências e na análise de processos-crime.
A pesquisa enquadra-se num contexto sociopolítico complexo que conjuga a ditadura do Estado Novo, a situação extrema da guerra em 3 territórios distintos na defesa da soberania do Portugal colonial e uma ordem hierárquica inquestionavelmente racializada, numa conjuntura internacional que advogava o direito à autodeterminação dos povos e, por isso, favorável às independências de territórios sob o domínio colonial. Em termos empíricos foca-se em processos-crime entendidos como discursos que constituem um espaço estruturado de relações de poder e de força entre os diferentes sujeitos e instituições que nele participam e nele inscrevem representações suportadas pela ordem sociopolítica e jurídica. Estes processos expressam o Estado exercendo o seu controlo da sociedade, através do funcionamento das suas instituições que realizam, na prática, o poder de punir, o ius puniendi, aplicando a lei cujos objetivos políticos, político-criminais stricto sensu, ideais legais e subjacentes padrões culturais condicionam as políticas e práticas na área da justiça. Por sua vez, as decisões dos processos são tomadas por sujeitos que não são meros porta-vozes do discurso oficial do Estado. As predisposições, as perceções, as crenças, os valores e as teorias, designadamente no domínio das finalidades das penas e das finalidades a cumprir pelo processo penal, dos agentes do Ministério Público e dos juízes condicionam a forma como avaliam a informação relativa aos casos e como atuam ao longo da marcha processual.
Sendo assim em termos hipotéticos, espera-se que as decisões e os procedimentos dos TMTAMG, em relação a crimes alegadamente cometidos por combatentes das FAP, revelem esquemas interpretativos, condicionados por fatores legais e extra-legais, relacionados com o quadro jurídico e político comprometido com os interesses do Estado Novo e com a manutenção da ordem colonial no contexto particular da guerra. |