Cerca de 250 pessoas, entre os quais especialistas nacionais e internacionais em diferentes áreas da saúde e da economia da saúde, incluindo médicos, professores universitários, economistas, gestores, administradores e responsáveis de organizações públicas e privadas, juntaram-se na Aula Magna da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), no passado dia 24 de novembro, para participarem na Conferência “Economia e Gestão da Saúde – Novos Desafios, Novos Modelos de Capacitação/Inovação e PRR”.
Com organização da FMUP, a iniciativa reuniu o secretário de Estado do Planeamento, Eduardo Pinheiro, o diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, entre outros, numa altura em que a saúde enfrenta um momento crítico.
A finalizar a Conferência, o secretário de Estado do Planeamento, Eduardo Pinheiro, e o diretor da FMUP, Altamiro da Costa Pereira, mostraram diferentes perspetivas em relação à execução do Plano de Recuperação e Resiliência em Portugal. O secretário de Estado insistiu na reprogramação do financiamento do PRR para a saúde, aprovada em 17 de outubro, nomeadamente para as redes de cuidados primários, cuidados continuados, cuidados paliativos e saúde mental, bem como para equipamentos para hospitais.
Já para o diretor da FMUP, permanecem dúvidas e muitas incertezas relativamente aos montantes e também à atribuição das verbas do PRR a tempo de lançar algumas das iniciativas da própria instituição, nomeadamente a nível da formação. “Há uma série de problemas no terreno que haverá que tentar ultrapassar. De qualquer maneira, tenho sempre muito otimismo”, ressalvou, lembrando o percurso pioneiro da FMUP na área da transição digital, muito particularmente na área do medicamento.
Também por isso, sabe que “é preciso porfiar. Eu e esta Faculdade sabemos muito bem o que é a resiliência. Se calhar, foi por não termos tido grandes apoios que temos tido sucesso. Muitas vezes, atirar dinheiro sobre as coisas não resolve os problemas, e até os pode agravar”.
“Vivemos, provavelmente, o período mais crítico do SNS”
Falando na sessão de abertura, o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) considerou que esta foi “uma conferência oportuna”, tendo em conta que "vivemos, provavelmente, o período mais crítico da existência do Serviço Nacional de Saúde”. Xavier Barreto fez uma lista dos principais problemas do SNS, começando pelo baixo investimento e pela sua baixa taxa de execução (cerca de 50%), a par da “dificuldade crescente em conseguir manter a resposta aos nossos cidadãos, apesar de termos “o maior orçamento de sempre”, o que mostra que “não basta atirar dinheiro para a Saúde”. De resto, disse ser “muito paradoxal que o PRR não tenha contemplado a saúde com investimento em instalações, em equipamentos, particularmente tendo em conta o estado de muitos dos nossos hospitais”.
Outros problemas que identificou foram “um modelo de governação em que os hospitais não têm autonomia para contratar um profissional de saúde e para comprar um equipamento”, uma avaliação das tecnologias de saúde “muito pobre” e a ausência de estratégia em termos de recursos humanos”, persistindo “condições de recrutamento pouco competitivas, pouco flexíveis e assentes em carreiras ultrapassadas” e um modelo de avaliação de desempenho que não permite incentivar os melhores”. Isto significa que “temos de avançar mais rapidamente na valorização dos nossos profissionais e nos incentivos associados ao desempenho”.
Apesar deste diagnóstico, Xavier Barreto acredita que “o SNS é viável, que vamos a tempo de fazer estas reformas e que temos profissionais de saúde comprometidos com esta mudança”, considerando mesmo que a criação de Unidades Locais de Saúde é “uma excelente oportunidade”, desde que a integração de cuidados seja “alargada à comunidade”, incluindo “farmácias, associações de doentes, municípios, setor social e setor privado”.
Antecipando que o SNS deverá ser um dos temas em destaque na campanha para as eleições legislativas, desejou que as conclusões desta Conferência sejam usadas pelos partidos nos seus programas políticos e que seja discussão feita “com base na evidência”, pela academia, e não com base em dogmas, ideologias e interesses que nem sempre estão alinhados com os interesses dos doentes”.
A necessidade de uma gestão da Saúde baseada na evidência, nos dados e na informação foi, de resto, a ideia central do discurso do diretor do Departamento de Medicina da Comunidade, Informação e Decisão em Saúde (MEDCIDS) da FMUP, um dos responsáveis pela organização desta Conferência. João Fonseca defendeu que “temos de mudar o paradigma, deixar de centrar os processos em teorias e em utopias e utilizar as tecnologias para melhorar a decisão”.
Considerando que “as decisões da Economia e da Gestão da Saúde matam mais do que as decisões clínicas”, argumentou que “não é ético continuarmos com o tipo de gestão que temos tido” e garantiu que a FMUP dará o seu contributo para essa “mudança de paradigma”.
“A questão da Medicina da Comunidade e da Medicina preventiva é fundamental para que haja uma gestão que não ande atrás da espuma dos dias, da sobrevivência e de poupanças mesquinhas”, frisou.
Guilhermina Rego, vogal do Conselho Executivo da FMUP e responsável pela organização, sublinhou que esta Conferência “é mais oportuna do que nunca”, ao suscitar a reflexão sobre “temas centrais para a modernização do Sistema de Saúde e para o seu ajustamento às necessidades das populações”.
“A existência de um sistema público de proteção da saúde é um fator decisivo para a melhoria sustentada dos indicadores de saúde da nossa população, mas a gestão dos serviços públicos tem-se revelado, por vezes, pouco eficiente”, ressaltou.
Para Guilhermina Rego, estamos perante uma “nova cultura na saúde” - “um bem económico altamente dispendioso” e “não gratuito” - em que “é preciso conciliar a qualidade dos cuidados e a otimização na utilização dos recursos”, promovendo “a melhoria da eficiência do ponto de vista económico, através da adequada gestão dos recursos financeiros, humanos e materiais, com o objetivo de um SNS mais justo e sustentável.
Falta de motivação dos profissionais de saúde é um dos problemas identificados
O diretor executivo do SNS moderou a primeira mesa desta Conferência, que considerou “disruptiva no seu conteúdo e na sua abordagem” e de onde esperou contributos para “decisões fundamentadas”. De acordo com Fernando Araújo, é preciso capacitar os intervenientes na Saúde “do ponto de vista dos modelos de cuidados e dos modelos de financiamento, em áreas como os recursos humanos (em particular à sua motivação), mas também as tecnologias digitais (sistemas de informação, inteligência artificial e outros) e os dispositivos médicos, de modo a “sermos mais exigentes” e a “defendermos os interesses dos utentes e do Estado”.
Hans Severens, do Conselho da Saúde da Holanda, considerou que “a Medicina pode aprender com a Economia e a Economia pode aprender com a Medicina. Temos uma missão conjunta para as próximas décadas”. O consultor em tecnologias de saúde debruçou-se sobre algumas das particularidades do complexo sistema de saúde do seu país e promoveu a discussão sobre “onde alocar o dinheiro para cada doente”.
“Este é o atual problema, na Europa”, realçou, recordando que o mercado da saúde não pode ser comparado com “um mercado livre”, no qual “o doente iria sofrer”. “Não é isso que queremos para a nossa sociedade, queremos um sistema equitativo em que os doentes tenham acesso aos cuidados de saúde”, disse.
Quanto aos desafios, acredita que são iguais nos dois países: “Estamos a sofrer pressão por causa do aumento das tecnologias da saúde, do envelhecimento da população, do aumento dos doentes crónicos, da inflação, da crise da energia. O que fazem quando têm um orçamento limitado? Temos de fazer escolhas. Há 30 anos, era o médico que escolhia o que era melhor para o doente e para o sistema, mas as coisas mudaram e há mais pessoas envolvidas na decisão. Agora queremos saber o que é melhor para o doente e o que é mais barato”, notou. Por isso, “o conhecimento é a chave. Em qualquer sistema de saúde, é preciso saber do que se está a falar sobre eficiência, gestão, custo-efetividade, guidelines clínicas, sob pena de não conseguir negociar”.
Numa intervenção sobre a componente comportamental da gestão, Fernando Almeida falou dos grandes desafios da capacitação dos profissionais de saúde, nomeadamente tempo e dinheiro, mas também da motivação. Para o chairman da Boyden, um dos principais problemas da atualidade é que “as pessoas estão sem propósito”, incluindo, na administração pública, os que se sentem presos às chamadas “algemas douradas”, sendo preciso motivá-las a fazer mais e melhor.
Já Rui Nunes, professor da FMUP, abordou diversos temas, desde a necessidade de motivar os profissionais de saúde, passando por propostas de medidas que podem fazer a diferença na saúde, como a educação e a literacia. “Falar de saúde sem falar de educação é um erro estratégico”, declarou.
O especialista em Bioética considerou também que “a administração pública tem de ser reinventada” e que “é preciso mudar a conceção de Estado”. Entende que o caminho deve ser o reforço da autonomia da gestão em saúde e a gestão de proximidade, sugerindo uma “municipalização”. Admitiu ainda que “a eficiência na gestão dos recursos” é “uma obrigação ética” e que “a priorização ética dos cuidados de saúde” é uma “inevitabilidade”.
Também Susana Oliveira, professora da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, destacou “o problema atual do burnout e da falta de motivação dos profissionais de saúde, que estão a ser atraídos para outros países, outras profissões e para o setor privado”, sublinhando, tal como outros oradores, que “não é apenas uma questão de remuneração”.
Quanto aos principais desafios do futuro, destacou a inteligência artificial, que vê como “uma oportunidade”, na saúde, por facilitar a tomada de decisão com base na evidência e a transmissão de informação padronizada aos doentes, além de providenciar apoio administrativo. Da parte dos professores, evidenciou as novas exigências dos alunos, como o ensino à distância.
Na parte da tarde, os trabalhos prosseguiram com duas mesas distintas, uma intitulada “Abraçar a Inovação: Novos Desafios. Novos Modelos”, moderada por Ricardo Damas (Gilead Sciences/FMUP), que teve como oradores Adolfo Mesquita Nunes (Gama Glória Associados), Filipe Costa (Luz Saúde) e Francisco Rocha Gonçalves (Sanofi).
“Planeamento e Execução: Projetos PRR com Participação da FMUP” foi o tema da última mesa, com moderação de Eduardo Costa, da Associação Portuguesa de Economia da Saúde, e intervenções de António Soares (FMUP), João Fonseca (diretor do MEDCIDS/FMUP) e Joaquim Cunha (HCP).