MESTRADO INTEGRADO EM MEDICINA VETERINÁRIA Medicina e Cirurgia de Animais de Companhia : caso s clínicos Inês Marisa Pinheiro Moreira MI 2025 Mestrado Integrado em Medicina Veterinária Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar Universidade do Porto Inês Marisa Pinheiro Moreira Medicina e Cirurgia de Animais de companhia Área científica: Medicina e Cirurgia de Animais de Companhia Orientador: Professor Doutor Pablo Payo Puente Co-orientador: Doutor Gonçalo Nuno Maurício Petrucci Porto, 2025 Resumo O presente relatório foi elaborado no âmbito do sexto ano do Mestrado Integrado em Medicina Veterinária do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto. Os seus objetivos centrais consistem na síntese das atividades desenvolvidas durante os estágios curricular e extracurricular, bem como na apresentação e análise crítica de cinco casos clínicos selecionados, acompanhados no contexto hospitalar. O estágio decorreu no Hospital Veterinário do Porto, ao longo de 23 semanas, com uma carga horária média semanal de 40 horas. Durante este período, integrei a equipa clínica num sistema de rotações semanais, que abrangeu diversas áreas, nomeadamente: Internamento, Consultas, Cirurgia, Dermatologia, Oncologia, Medicina Interna e Cardiologia. Neste contexto, tive oportunidade de participar em consultas de rotina, de especialidade e de emergência; assistir a reuniões clínicas diárias relativas aos animais internados, — com o objetivo de monitorizar o seu estado clínico, discutir a necessidade de exames complementares, reajustes terapêuticos e definir diagnósticos e prognósticos —, bem como acompanhar e executar diversos procedimentos. Entre estes, incluem-se a realização de exames físicos, avaliação e substituição de cateteres endovenosos, aplicação de pensos, administração de terapêutica, colheita de amostras biológicas e realização de exames laboratoriais e imagiológicos. Adicionalmente, participei na interpretação dos resultados dos exames complementares, em procedimentos anestésicos e cirúrgicos, e integrei turnos de urgência, tanto diurnos como noturnos. Os objetivos delineados para este estágio, que considero integralmente cumpridos, incluíram: a aquisição, consolidação e aprofundamento de conhecimentos teóricos e práticos na área da medicina e cirurgia de animais de companhia; o acompanhamento e discussão de casos clínicos reais, com vista ao desenvolvimento de um raciocínio clínico estruturado; a prática de procedimentos clínicos, desde a contenção segura de animais até à realização de exames complementares de diagnóstico; a interpretação integrada dos resultados, correlacionando-os com a história clínica, sinais observados e evolução do doente; a preparação para a atuação em situações de emergência, garantindo uma resposta rápida e eficaz; e, por fim, o desenvolvimento de competências de trabalho em equipa e de comunicação clara e eficiente com os tutores dos animais. Palavras-chave: estágio; hospital; medicina; cirurgia; animais de companhia; Casuística O presente estágio foi estruturado com um sistema de rotação semanal, abrangendo os seguintes serviços: Internamento (5 semanas), consultas (5 semanas), cirurgia (3 semanas), Dermatologia (2 semanas), Oncologia (3 semanas), Medicina Interna (3 semanas) e Cardiologia (2 semanas). O gráfico abaixo apresenta a distribuição do número de casos clínicos acompanhados em cada especialidade ao longo deste período. Casuística de medicina Figura 1. Número de casos clínicos acompanhados em cada especialidade No que se refere à prática cirúrgica, tive oportunidade de participar num total de 53 intervenções, das quais 50 cirurgias de tecidos moles e 3 cirurgias ortopédicas, conforme resumido na tabela abaixo. Intervenção cirúrgica Frequência Intervenção cirúrgica Frequência Bypass ureteral subcutâneo 2 Herniorrafia inguinal 1 Destartarização 10 Implantação de pacemaker 1 Enucleação 1 Lavagem auricular 4 Enterectomia 2 Mastectomia 1 Esplenectomia 1 Nodulectomia 10 Esternotomia 1 Osteotomia de nivelamento da Meseta Tibial (TPLO) 2 Exérese de massa torácica 1 Ovariohisterectomia 9 Exodontia 3 Uretrostomia 1 Gastrotomia 2 Ventral Slot 1 Tabela 1. Intervenções cirúrgicas e respetiva frequência Agradecimentos Ao terminar esta etapa tão significativa da minha vida, sinto que é essencial reconhecer e agradecer a todos aqueles que, de diferentes formas, fizeram parte do meu percurso. Ao Professor Pablo Payo por ter aceitado a ‘’loucura’’ de me orientar. A sua disponibilidade, paciência e orientação foram essenciais para que conseguisse concluir este desafio com confiança e motivação. Um agradecimento muito especial também ao Hospital Veterinário do Porto, onde tive a oportunidade de estagiar. A toda a equipa, obrigada por me acolherem, ensinarem e integrarem como parte da casa. Quero também deixar uma palavra muito especial de agradecimento à Dra. Isabel Lourinho, à Dra. Ana Maria Moreira e ao Dr. Pedro Lopes por terem transformado profundamente a forma como me compreendo e enfrento os desafios do dia a dia. A todos os veterinários que fui conhecendo ao longo da vida, obrigado por me mostrarem o verdadeiro valor desta profissão. Foi com o vosso exemplo que fui construindo a certeza de que escolhi o caminho certo. Aos meus pais, o meu agradecimento mais profundo. Pelo amor incondicional, pelo colo, pelo apoio constante, pela paciência e por nunca deixarem de acreditar em mim, mesmo nos momentos em que eu própria duvidava. Nada disto teria sido possível sem vocês. À minha querida afilhada Sofia, de apenas quatro anos, obrigada por me relembrares a magia de ver o mundo com as cores do arco-íris. És uma inspiração pequenina, mas gigante no amor que me dás. Ao Tiago obrigada por estares ao meu lado, por me entenderes, apoiares e celebrares cada pequena conquista. O teu amor e companhia tornaram este percurso muito mais leve e significativo. Aos meus amigos: vocês foram e continuam a ser o meu suporte, a minha motivação e o meu refúgio. Obrigado por estarem lá em cada momento de dúvida, por me ouvirem, por me incentivarem e, acima de tudo, por me ajudarem a nunca desistir. Aos meus animais — os meus companheiros mais fiéis e, muitas vezes, as minhas cobaias ao longo destes anos —, o meu mais sincero obrigado. Em especial à Laika, que agora é uma estrelinha. Obrigada por tudo o que me ensinaste, pelo carinho incondicional e por teres feito parte da minha vida. Continuas comigo em cada passo, de uma forma diferente, mas igualmente presente. ‘’Podría ser dificil al principio, pelo todo es difícil al principio.’’ Miyamoto Musashi Índice Caso clínico nº1: Comportamento - Marcação de território ………………………………………………………………..1 Caso clínico nº2: Dermatologia – Pênfigo foliáceo ………………………………………………………………………………9 Caso clínico nº3: Oncologia – Carcinoma de células escamosas ………………………………………………………..15 Caso clínico nº4: Neurologia – Meningite-arterite responsiva a esteroides ……………………………………….23 Caso clínico nº5: Urinário – FLUTD obstrutivo …………………………………………………………………………………..32 Lista de abreviaturas % - Percentagem > - Maior/ superior < - Menor / inferior kg - Quilograma L - Litro m2 - Metro quadrado mEq - Miliequivalentes mg - Miligrama μg - Micrograma μL - Microlitro ᵒC - Graus centígrados ® - Marca registada ALB - Albumina ALP - Fosfatase alcalina ALT - Alanina aminotransferase BID - Duas vezes por dia BUN - Ureia CAMV - Centro de Atendimento Médico- Veterinário CC - Condição Corporal CCE - Carcinoma de Células Escamosas CIF - Cistite idiopática felina Cl - Cloro CRE - Creatinina CRP - C reactive protein (Proteína C reativa) DNA - Desoxyrribonucleic acid (Ácido desoxirribonucleico) DRPF - Drug-Related Pemphigus Foliaceus (Pênfigo foliáceo relacionado com fármacos) EQT - Eletroquimioterapia FLUTD - Feline Lower Urinary Tract Disease (doença do trato urinário inferior felino) GLU - Glucose HTC - Hematócrito HVP - Hospital Veterinário do Porto IgA - Imunoglobulina A IL - Interleucina ISRS - inibidor seletivo da recaptação da serotonina IV - Endovenosa ITU - Infeção do trato urinário K - Potássio LCR - Líquido Cefalorraquidiano MARE - Meningite-Arterite Responsiva a Esteroides MCH - Mean corpuscular hemoglobin (Hemoglobina corpuscular média) MCHC - Mean corpuscular hemoglobin concentration (Concentração média de hemoglobina corpuscular) MCV - Mean corpuscular volume (Volume corpuscular médio) MPV - Mean platelet volume (Volume plaquetário médio) MEMO - Multimodal Environmental Modification MPV - Volume Médio de Plaquetas Na - Sódio NET - Neutrophil extracellular traps (Armadilhas extracelulares dos neutrófilos) OMS - Organização Mundial de Saúde PF - Pênfigo Foliáceo PO - per os ppm - Pulsações por Minuto REF - Valor de Referência RM - Ressonância magnética rpm - Respirações por Minuto SNC - Sistema Nervoso Central TC - Tomografia computorizada TID - Três vezes ao dia To - Temperatura TP - Proteínas Totais TRC - Tempo de Repleção Capilar UI - Unidades Internacionais UV - Ultravioleta Caso clínico nº1 – Comportamento – Marcação de território Caracterização do doente: O Pissi era um gato macho, europeu comum, esterilizado, indoor, de 4 anos de 6,0kg. Motivo da consulta: O Pissi apresenta periúria, há um ano, que iniciou de forma gradual. A marcação ocorre diariamente, por vezes mais do que uma vez por dia. As tutoras relatam como fator atenuante a restrição de acesso a determinadas divisões da casa, e como fator agravante a tentativa de levar o animal a um pátio exterior privado do apartamento. Desde então, vocaliza com frequência junto ao hall numa tentativa de sair e, de seguida, dirige-se à cadeira onde urina frequentemente. História clínica: O animal encontrava-se adequadamente vacinado e desparasitado. O Pissi registava antecedentes de cristalúria, tendo realizado exames de controlo no último mês, incluindo ecografia abdominal, que não revelaram alterações significativas. Não existe informação detalhada sobre o tipo de cristais, nem da avaliação feita no CAMV que acompanhou o animal durante este episódio. Segundo as tutoras, o Médico Veterinário que acompanhava o animal sugeriu a marcação de uma consulta de comportamento animal, após exclusão de outras possíveis causas de periúria. Além disso, apresenta periúria há cerca de um ano. A tutora não relata comorbilidades. Não fazia medicação diária e não apresentava histórico cirúrgico relevante, além da esterilização. Não apresenta histórico de viagens, nem hábitos de ingestão de objetos estranhos nem tóxicos. O Pissi residia num apartamento com duas tutoras, coabitando com três gatos e uma cadela. Demonstra comportamentos afiliativos com todos os coabitantes e realiza marcação facial adequada. A dieta consistia em ração seca e húmida de marcas comerciais não especificadas pelas tutoras. Anamnese dirigida (comportamento): Apresenta comportamentos compatíveis com marcação urinária em várias zonas da casa, nomeadamente no escritório, nos guarda-vestidos dos quartos e, com especial frequência e preferência numa cadeira que se encontra no hall de entrada. Foi realizada uma planta da habitação de modo a avaliar a distribuição de recursos, incluindo pontos de alimentação e água, locais de descanso, caixas de areia, arranhadores e outros recursos utilizados como sofás, locais de passagem, pontos de entrada e saída entre as diferentes divisões. Registaram-se ainda as áreas inacessíveis ao Pissi e coabitantes, possíveis locais de conflito (que parecem não existir) e os locais preferenciais para o comportamento indesejado. O local preferido do Pissi para a marcação territorial concentra-se no hall, particularmente numa cadeira - as tutoras removeram temporariamente a cadeira, mas o comportamento persistiu com outro foco. O Pissi apresenta comportamentos de marcação territorial, independentemente da presença das tutoras. Adicionalmente, adota uma postura com a cauda erguida na vertical, e a urina é expelida em jatos direcionados, sem tentativa de cobrir. As tutoras não aplicam punição ao animal quando presenciam a marcação de território nem posteriormente. Quanto à distribuição de recursos, existem 7 caixas de areia distribuídos pela casa: abertas (com tofu) e fechadas (com areia aglomerante). Os pontos de alimentação estão próximos das liteiras, e a água é disponibilizada ao lado da comida. Há difusores Feliway Optimum® no quarto e na sala, e um spray Feliway Classic® utilizado esporadicamente. Diagnósticos diferenciais: Marcação território urinário, aversão à liteira, preferência por substrato ou localização, subótima gestão de recursos, frustração ambiental, ansiedade por separação, fobia generalizada, conflitos interespécie, resposta condicionada aversiva, transtorno compulsivo felino com componente eliminatório, síndrome de disfunção cognitiva felina. Exames complementares: Com base na avaliação comportamental e no histórico clínico do paciente, foram consideradas e subsequentemente excluídos diversos diagnósticos diferenciais. A Síndrome de Disfunção Cognitiva Felina foi descartada, uma vez que o animal não se enquadra na faixa etária típica (>11 anos), e não apresentou sinais compatíveis, como desorientação, alterações nos ciclos sono-vigília, défice de memória espacial (ex: esquecimento da localização da caixa de areia), ou vocalização noturna típica e persistente, comumente associados a esse diagnóstico. O diagnóstico de Transtorno Compulsivo Felino com componente eliminatório também foi excluído. Apesar da periúria poder sugerir inicialmente um padrão estereotipado, o comportamento demonstrou ser responsivo a modificações ambientais simples, como a restrição do acesso a determinadas divisões por parte das tutoras. Essa resposta à intervenção é incompatível com um quadro compulsivo, geralmente resistente à intervenção ambiental. A resposta aversiva condicionada à caixa de areia, associada a uma experiência dolorosa prévia (ex.: episódio de cistite), foi considerada improvável, pois o animal não demonstrou evitar ativamente a caixa, nem comportamentos de aproximação-evitamento. Embora houvesse histórico de patologia urinária, não foram identificados indícios de trauma associado ao ato de micção que pudesse funcionar como estímulo aversivo condicionado. Relativamente à possibilidade de conflito intergato, esta foi considerada improvável. Apesar de a periúria ocorrer em zonas de passagem e próximas a recursos compartilhados, não foram observados comportamentos indicativos de tensão social entre os felinos do agregado, como bloqueio de recursos por parte de gatos dominantes, micção sobre áreas previamente marcadas por outros indivíduos ou padrões de evitamento entre os animais. A ansiedade generalizada ou fobia também foi excluída como causa provável, pois os episódios de periúria, embora ocorressem em contextos de mudanças ambientais ou eventos potencialmente stressantes, não eram episódicos nem inconsistentes. Além disso, o gato não apresentava outros sinais comportamentais adicionais típicos como hipervigilância, resposta de sobressalto exacerbada ou tendência para se esconder. Por fim, a hipótese de ansiedade por separação felina foi descartada, uma vez que a micção não ocorreu em objetos com odor dos tutores (ex: como roupa ou cama), não existe correlação temporal clara com a ausência dos mesmos e o animal não manifestou comportamentos característicos, como vocalização excessiva, destruição de objetos ou sinais de depressão. Diagnóstico: Marcação de território por stress Terapêutica e evolução: Foi recomendada a elaboração de um registo diário das marcações territoriais durante um mês para facilitar a avaliação da progressão. Reforçou-se a importância da distribuição de recursos: os pontos de comida devem estar bem afastados uns dos outros e colocados em divisões diferentes, e a água deve ser disponibilizada em locais separados da comida. Os difusores devem ser mantidos, privilegiando o Feliway Friends® ou Feliway Optimun®, principalmente nos locais onde o Pissi tem mais apetência para marcação. As caixas de areia devem ser abertas e com areia aglomerante sem cheiro. Caso não se verifiquem melhorias comportamentais, poderá ser necessária uma abordagem farmacológica. Discussão: Os gatos domésticos destacam-se atualmente como um dos animais de companhia mais populares, com milhões de indivíduos registados na Europa e nos EUA. A sua popularidade deve- se à facilidade de manutenção, independência e adaptação a espaços pequenos, sendo ideais para estilos de vida urbanos e tutores com pouco tempo livre. No entanto, esta transição para ambientes domésticos restritos, quando comparada ao seu habitat natural, pode comprometer significativamente o seu bem-estar, sendo os problemas comportamentais uma das principais causas de abandono. Esta realidade reforça a necessidade permanente de compreender e adaptar o ambiente físico e social às necessidades da espécie [1]. Durante décadas, a espécie Felis catus foi considerada uma espécie solitária e territorial, interagindo com outros indivíduos apenas para fins reprodutivos ou no cuidado parental. No entanto, investigações mais recentes demonstram que os gatos possuem uma plasticidade social notável particularmente em contextos domésticos ou em colónias estáveis [1]. Em ambientes enriquecidos e com disponibilidade previsível de recursos, os gatos demonstram uma capacidade de estabelecer relações sociais duradouras com indivíduos da mesma espécie, sendo estas particularmente evidentes entre congéneres coabitantes. Estes vínculos são expressos através de comportamentos afiliativos que desempenham um papel fundamental na coesão social, manutenção da harmonia e redução de conflitos [2]. Os comportamentos afiliativos mais comuns, como os que o Pissi apresentava com os coabitantes, incluem: allogrooming (lambedura mútua, predominantemente na cabeça e pescoço), que fortalece os laços sociais e promove a uniformização do odor de grupo; allorubbing (roçar do corpo e cabeça), frequentemente acompanhado por comportamentos de saudação como o levantar da cauda (tail-up); dormir com contacto físico, entrelaçar caudas e partilhar zonas de descanso [2]. Estes comportamentos não são aleatórios, mas sim o reflexo de preferências sociais entre indivíduos, moldadas por múltiplos fatores como: grau de parentesco, idade, sexo, estado reprodutivo e experiências prévias de socialização. Gatos criados juntos desde o período sensível da socialização (entre a 2ª e a 9ª semana de vida) desenvolvem vínculos sociais mais robustos e duradouros [2]. Ao contrário de espécies sociais obrigatórias como Canis lupus ou Panthera leo, os gatos não desenvolvem estruturas hierárquicas complexas ou dependência cooperativa na obtenção de recursos. Em vez disso, adotam uma estratégia de evitamento social como mecanismo primário de prevenção de conflitos. No entanto, em grupos com relações estáveis e positivas, os comportamentos afiliativos tornam-se mais frequentes, facilitando a partilha pacífica de território e recursos [2]. A convivência de múltiplos gatos numa habitação requer uma gestão ambiental criteriosa. A escassez ou má distribuição de recursos, pode desencadear competição, comprometendo a qualidade das relações sociais. Assim, recomenda-se a duplicação dos recursos essenciais (e.g., alimentação, água, caixas de areia, áreas de descanso e enriquecimento), bem como a sua dispersão espacial, para promover comportamentos afiliativos e reduzir o stress social [1, 2]. Aquando da introdução de novos elementos, as tutoras do Pissi aumentaram o número de caixas de areia, bem como pontos de alimentação e de água. A comunicação entre gatos pode ser intraespecífica, ou seja, ocorre entre indivíduos da mesma espécie, com o objetivo de transmitir informações sobre o território, estado emocional e características físicas. Essa comunicação pode ocorrer por diversos canais, incluindo os sistemas visual, olfativo e auditivo. No caso dos gatos domésticos, esses sinais evoluíram de forma a permitirem interações mais sociais, adaptando-se à convivência em grupo sem recorrer frequentemente a confrontos físicos [3]. Embora a comunicação visual seja limitada, com sinais discretos como posturas corporais e expressões faciais, ela é crucial para indicar emoções como medo ou agressividade. Adicionalmente, os gatos utilizam feromonas e sinais olfativos para marcar território e comunicar, processo facilitado pelas glândulas especializadas presentes no corpo [1,2]. Entre os diversos sinais de comunicação, a postura corporal desempenha um papel importante na resolução de conflitos, refletindo emoções como medo ou agressão. Por exemplo, posturas defensivas são comuns em situações de ameaça, enquanto posturas ofensivas indicam preparação para o confronto [2,3]. Os gatos também utilizam a cauda, as orelhas e os bigodes para expressar emoções e estados internos, como excitação ou medo. Embora o comportamento de arranhar seja frequentemente associado à manutenção das unhas, também serve de comunicação, marcando território através de sinais olfativos e visuais [1,2]. A marcação de território com urina constitui uma das formas mais reconhecidas de sinalização nos gatos. Este comportamento é realizado principalmente por machos inteiros, especialmente na presença de fêmeas em estro, mas também pode ocorrer em gatos castrados ou fêmeas, frequentemente associado a situações de stress ou ansiedade, sobretudo em gatos de interior [1,2]. A marcação é feita com a posição de cauda erguida na vertical, e a urina é expelida em jatos direcionados para superfícies verticais, sem tentativa de cobrir, ao contrário da urina normal, onde o gato procura tapar a urina. A urina contém substâncias como felinina e isovaltina, cuja decomposição acentua o odor ao longo do tempo. A produção de felinina está diretamente relacionada com os níveis de testosterona, sendo mais abundante em gatos inteiros [1,2]. No caso do Pissi, apesar de ser um gato castrado, o comportamento descrito pelas tutoras é compatível com marcação territorial por stress ou ansiedade. Relativamente às fezes, os gatos tendem a cheirá-las com maior interesse quando provêm de gatos desconhecidos, sugerindo que estas podem veicular informações sociais. Estudos indicam que gatos de vida livre frequentemente tapam as fezes no centro de seu território, o que sugere que este comportamento também possa estar relacionado com a marcação territorial [1,2]. A recolha de dados detalhada e abrangente é fundamental para um diagnóstico comportamental preciso em gatos, devendo incluir a análise de interações entre eles, as posturas corporais, expressões faciais, vocalizações, estímulos, alvos e atitude do tutor. Para o diagnóstico, é crucial realizar um exame físico e neurológico minucioso, complementando, com exames adicionais se necessário. Algumas condições, como osteoartrite ou hipertiroidismo, podem influenciar o comportamento dos gatos. No entanto, neste caso clínico, o foco recai sobre a marcação territorial com urina, sem evidência de doença subjacente [1, 3]. O enriquecimento ambiental desempenha um papel crucial na promoção do bem-estar físico e psicológico dos gatos, particularmente em ambientes interiores. Envolve a introdução de estímulos que estimulam comportamentos naturais, como brincar, explorar, caçar e marcar território, contribuindo assim para um maior equilíbrio emocional e fisiológico. Os estímulos podem ser sensoriais, cognitivos, sociais, físicos ou alimentares. Um ambiente adequadamente enriquecido deve incluir: estruturas tridimensionais, locais elevados de observação, esconderijos seguros e zonas distintas para comer, beber, eliminar e brincar. As relações positivas com os tutores também são determinantes para o bem-estar animal [1, 4]. A estimulação visual, como o acesso a janelas ou imagens em movimento, pode ser benéfica, embora deva ser utilizada com moderação para evitar frustração. Por outro lado, a estimulação olfativa, com catnip, pode induzir comportamentos lúdicos e atividades físicas em muitos gatos. Desta forma, o enriquecimento ambiental constitui uma ferramenta chave na promoção da saúde comportamental dos gatos, prevenindo distúrbios associados ao tédio, stress e frustração [1,2,3]. A organização dos recursos no ambiente doméstico é um fator determinante para o bem-estar dos gatos, sendo a qualidade do espaço mais relevante do que a sua dimensão. Como espécie territorial e vertical, os gatos beneficiam significativamente da presença de estruturas elevadas (e.g., como prateleiras ou arranhadores com plataformas) que promovem vigilância e segurança. Estes locais estão associados à redução de comportamentos associados ao stress, como a higiene excessiva. As áreas de descanso devem ser confortáveis, acolchoadas e em número suficiente, especialmente em ambientes com vários gatos. Igualmente importantes são os esconderijos, preferencialmente elevados, que permitem ao animal isolar-se perante estímulos aversivos [1]. No que concerne à alimentação, esta deve ocorrer em locais calmos, afastados de ruídos imprevisíveis e da presença de outros animais. Recomenda-se a utilização de alimentadores interativos que estimulem comportamentos naturais de caça, como bolas dispensadoras ou labirintos. A água deve estar disponível em vários pontos da casa, idealmente afastada da comida, e em formatos que respeitem as preferências individuais, por exemplo, fontes de água. Os arranhadores, elementos essenciais para a marcação olfativa e visual, devem estar em locais estratégicos, como entradas e zonas de repouso. Em contextos multi-gato, é crucial garantir recursos em duplicado (alimentação, eliminação, descanso), minimizando a competição. As caixas de areia devem seguir a regra "número de gatos + 1", estar em locais tranquilos e afastadas de eletrodomésticos ou zonas de passagem. A criação de barreiras visuais e a distribuição dos recursos respeitando distâncias sociais (1-3 metros) ajuda a prevenir conflitos e promove a coexistência pacífica entre gatos coabitantes [3]. As feromonas faciais felinas, particularmente a fração F3, têm efeito calmante e inibem comportamentos de marcação indesejados, como a marcação urinária ou com as unhas. Os análogos sintéticos dessas feromonas, como Feliway® (F3) e Felifriend® (F4), são ferramentas terapêuticas úteis no maneio de distúrbios comportamentais. O Feliway®, mimetizando a F3, promove uma sensação de familiaridade no ambiente, demonstrando eficácia na redução da marcação urinária, agressividade intraespecífica e ansiedade associada a mudanças ou coabitação. Por sua vez, o Felifriend® facilita interações positivas entre gatos e entre gatos e humanos, sendo recomendado na introdução de novos indivíduos no grupo. A aplicação ambiental destas feromonas está associada à diminuição de respostas comportamentais relacionadas ao stress, como medo e agressividade, e ao aumento de comportamentos naturais como grooming e ingestão alimentar [4]. O médico veterinário assume um papel fundamental na promoção do bem-estar felino, sendo responsável pela observação sistemática do comportamento dos gatos durante as consultas e pela educação dos tutores sobre comportamentos normais e patológicos. A deteção precoce de alterações comportamentais permite a prevenção e o diagnóstico atempado de distúrbios, sendo útil, em alguns casos, a monitorização domiciliária, incluindo gravações de vídeo [1,2]. Alterações comportamentais podem ser manifestações de doenças sistémicas, pelo que é essencial excluir causas médicas antes de considerar um problema como exclusivamente comportamental. O stress, enquanto fator fisiopatológico, influencia diretamente a saúde física e mental, podendo agravar ou predispor a doenças dermatológicas, gastrointestinais, respiratórias, cardiovasculares e neurológicas. Por outro lado, a dor e o desconforto, também geram stress, fechando o ciclo entre afeção médica e alteração comportamental. A distinção entre causas médicas e comportamentais é, por isso, cada vez mais ténue, exigindo uma abordagem holística. Dada a tendência dos gatos para mascarar sinais de dor ou doença, as consultas regulares e os exames complementares são cruciais para a deteção precoce de alterações [4]. No caso do Pissi, o médico veterinário habitual terá descartado todas as causas médicas propriamente ditas. Quando as intervenções ambientais e comportamentais não são suficientes, pode ser necessário recorrer a farmacoterapia. No passado foram usadas benzodiazepinas, contudo apresentavam baixa eficácia e mais efeitos adversos. Atualmente, a terapia farmacológica centra-se em fármacos modeladores da serotonina como a fluoxetina, clomipramina, paroxetina, entre outros [1]. A fluoxetina, um inibidor seletivo da recaptação da serotonina (ISRS), tem demonstrado eficácia na redução da frequência da marcação urinária em gatos, particularmente quando associada a quadros de ansiedade ou stress. Este fármaco atua modulando os níveis centrais de serotonina, contribuindo para a diminuição dos comportamentos de marcação e promovendo maior estabilidade emocional e comportamental [5]. Estudos demonstram que a fluoxetina, administrada oralmente na dose de 0,5 a 1 mg/kg SID, pode reduzir significativamente os episódios de marcação urinária após 4 a 6 semanas de tratamento, com melhorias sustentadas quando associada a modificações ambientais adequadas. Assim, a fluoxetina constitui uma ferramenta terapêutica válida no controlo da marcação urinária em gatos, particularmente quando integrada numa abordagem multimodal centrada no bem-estar emocional do animal. Embora geralmente bem tolerada, a fluoxetina pode provocar efeitos adversos como anorexia, letargia ou perturbações gastrointestinais, sendo fundamental o acompanhamento clínico regular. Assim, a fluoxetina representa uma ferramenta terapêutica segura e eficaz no controlo da marcação urinária por causas comportamentais, desde que usada no contexto de uma abordagem multimodal centrada no bem-estar físico e emocional do animal [1, 5]. Em suma, a marcação urinária do Pissi parece ser um comportamento multifatorial, influenciado por aspetos ambientais, sociais e emocionais. As mudanças propostas — como a reorganização dos recursos, o uso de feromonas e a implementação de enriquecimento ambiental — são estratégias que visam reduzir o stress e a frustração do animal, promovendo uma convivência mais tranquila e equilibrada dentro de seu ambiente doméstico. A paciência e a observação contínua serão cruciais para avaliar a eficácia dessas intervenções e para ajustar o tratamento conforme necessário. Referências bibliográficas: 1. Horwitz, D. F., & Mills, D. S. (Eds.). (2009). BSAVA manual of canine and feline behavioural medicine (2nd ed.). British Small Animal Veterinary Association. 2. Overall, K. L. (2013). Veterinary guide to preventing behavior problems in dogs and cats. Elsevier Health Sciences. 3. Ellis, S. L. H., Rodan, I., Carney, H., Heath, S., Rochlitz, I., Shearburn, L. D., Sundahl, E., & Westropp, J. L. (2013). AAFP and ISFM feline environmental needs guidelines. Journal of Feline Medicine and Surgery, 15(3), 219–230. https://doi.org/10.1177/1098612X13477537 4. Slater, M. R. (2015). The social lives of free-roaming cats. Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, 45(2), 261–271. https://doi.org/10.1016/j.cvsm.2014.10.003 5. Pereira, M. E., Silva, P., & Oliveira, C. (2021). Therapeutic management of feline urine marking: clinical case review. Journal of Feline Behavior and Welfare, 2(1), 45–51. Caso clínico nº2 – Dermatologia – Pênfigo Foliáceo Caracterização do doente: O Pastel era um gato esterilizado, de raça europeu comum, branco, de 3 anos e com 7,585kg. Motivo da consulta: Foi levado à consulta de dermatologia devido ao surgimento súbito de crostas nos últimos dias, num contexto de animal em remissão clínica de pênfigo foliáceo (PF) há um ano. A tutora não referiu o momento exato do surgimento das lesões, mas salientou que estas não se agravaram até à data da consulta e não identifica fatores agravantes ou atenuantes. História clínica: O Pastel estava vacinado e desparasitado, tinha acesso ao exterior, maioritariamente em ambiente privado (jardim e terrenos agrícolas envolventes). Não apresenta antecedentes cirúrgicos, exceto a esterilização. A sua dieta consistia exclusivamente em ração seca Ownat® para gatos esterilizados e húmida (Purina® Gourmet Gold ou Purina® Felix). Não tinha acesso a tóxicos ou medicamentos e coabitava com duas gatas e um cão. O Pastel foi mordido na região média da cauda por um gato de rua e realizou tratamento noutro CAMV com meloxicam (0,05mg/kg PO SID) durante três dias e amoxicilina/ ácido clavulânico (20mg/kg PO BID) durante 14 dias. Fez limpezas locais com clorexidina. No final do tratamento, a região onde ocorreu a mordedura ainda apresentava eritema, dor, hipertermia localizada e crostas, sugerindo um processo inflamatório ativo. Iniciou um tratamento de 6 dias com robenacoxib para alívio da dor e inflamação. Após 24h, demonstrava maior conforto, mas surgiu uma nova lesão crostosa na borda de um dos pavilhões auriculares. Alguns dias depois, o Pastel encontrava-se prostrado e surgiram novas lesões cutâneas, sugerindo um agravamento sistémico da condição. Foi realizada avaliação citológica por aposição das regiões dermatológicas afetadas, que revelaram inflamação piogranulomatosa, com numerosos neutrófilos e raros cocos, bem como numerosos queratinócitos acontolíticos. Realizou-se também biópsia, que confirmou pioderma profunda na base da cauda e PF. Assim, prescreveu-se metilprednisolona (2,5mg/kg PO BID) e cefalexina (24mg/ko PO BID). Após um mês, na consulta de reavaliação, verificou-se regressão total das lesões, com crescimento do pêlo nas áreas afetadas. O animal apresentava bom apetite, estava ativo e confortável. Assim, manteve-se a cefalexina mais duas semanas e foi estabelecido um protocolo de desmame gradual da metilprednisolona: 12mg PO SID durante 10 dias, seguido de 9mg PO SID durante 3 semanas, depois 6mg PO SID 2 semanas, e finalmente, 6mg PO q48h ao longo de 3 semanas, no final das quais a terapia foi interrompida. O tratamento foi suspenso ao fim de 13 semanas. O Pastel teve ausência de recidivas durante um ano. Exame físico geral: atitude normal, em estação, marcha e decúbito; estado mental normal, com temperamento equilibrado; condição corporal (CC) de 7/9; movimentos respiratórios costoabdominais, superficiais, rítmicos e regulares, com uma frequência de 25 rpm; auscultação cardíaca normal; pulso forte, bilateral, simétrico e síncrono, com uma frequências de 182 ppm; membranas mucosas rosadas, húmidas e brilhantes, com TRC <2 segundos; grau de desidratação <5%; temperatura de 38,8ºC; linfonodos normais à palpação; palpação abdominal normal; não apresenta sinais de dor (movimenta-se sem dificuldade e não apresenta desconforto, posições antiálgicas nem vocaliza antes nem durante a exploração). Exame dirigido (dermatológico): O Pastel tinha o pêlo curto, branco, com aspeto mate e seco. Com exceção das lesões detetadas em redor da cauda, região perianal e coxa caudal, a pelagem e o pelo não apresentavam anomalias: a pele apresentava elasticidade e espessura normais. A avaliação das regiões dermatológicas alvo revelou crostas nas regiões supracitadas (Figura A1). Lista de problemas: crostas ao redor da cauda, região perianal e coxa caudal Diagnósticos diferenciais: Pênfigo foliáceo (PF), dermatofitose, dermatite actínica, pioderma superficial, dermatose paraneoplásica Exames complementares: Citologia por aposição da lesão da base da cauda: inflamação piogranulomatosa, com elevado número de neutrófilos e moderado número de queratinócitos acontolíticos (Figura A2). Diagnóstico: Pênfigo foliáceo (PF) Terapêutica e evolução: Tendo em conta a boa resposta terapêutica prévia do Pastel, prescreveu-se metilprednisolona (2,0mg/kg PO SID). Na consulta de controlo às 3 semanas, verificou- se a regressão completa das lesões. A tutora não reportou efeitos adversos do tratamento e referiu que o Pastel esteve sempre ativo e com apetite. Foi então implementado um protocolo de desmame gradual da metilprednisolona: metilprednisolona (1,58mg/kg PO SID) 3 semanas, metilprednisolona (1,05mg/kg PO SID) 3 semanas e nova consulta de seguimento. Discussão: O PF é a doença autoimune de pele mais comum em gatos [1]. Ocorre devido a uma reação de hipersensibilidade tipo II, na qual o sistema imunológico produz autoanticorpos contra proteínas presentes nos desmossomas (estruturas responsáveis pela adesão entre as células da pele), levando à sua destruição. Assim, a adesão entre queratinócitos é comprometida, o que resulta na formação de pústulas subcorneais [2]. Estas pústulas são a lesão primária do PF. No entanto, essas pústulas são muito frágeis, e rapidamente são destruídas e originam erosões e crostas, acompanhadas por eritema e alopécia. As lesões costumam surgir de forma simétrica e bilateral, afetando principalmente os pavilhões auriculares (como no caso do Pastel), nariz, almofadas plantares, pregas ungueais, regiões perioculares e periareolares. Além das lesões cutâneas, podem apresentar sintomas sistémicos como febre, letargia e anorexia [1,3]. Embora não haja predisposição comprovada por raça, sexo ou idade, a maioria dos gatos diagnosticados tem cerca de seis anos [1], e o Pastel de facto não cumpria esta condição. Alguns fatores de risco incluem exposição à radiação ultravioleta, doenças concomitantes como timoma ou leishmaniose, e a administração de fármacos poderão ser fatores de risco para o desenvolvimento de PF [1,2]. No caso do Pastel, o quadro dermatológico apresentava alta correlação com os critérios de diagnóstico de pênfigo foliáceo, estabelecendo esta como a principal hipótese clínica. O diagnóstico baseia-se em resultados clínicos, citológicos e histopatológicos. A presença de queratinócitos acantolíticos sub-corneais, frequentemente acompanhados por infiltrados de natureza neutrofílica ou eosinofílica, acompanhados de dermatite pustular e crostosa, são compatíveis com um quadro de PF. Os principais diagnósticos diferenciais incluem piodermite superficial e dermatofitose, que podem ser descartados com o auxílio de citologias, cultura bacteriana e fúngica, além de colorações especiais como o PAS [2]. No caso do Pastel, estes diferenciais foram considerados pouco prováveis devido ao quadro clínico apresentado. Os glucocorticoides sistémicos, como prednisona, prednisolona, triamcinolona e dexametasona, são a primeira escolha para o tratamento de PF [1,4]. A dose inicial recomendada varia entre 2,2 - 4,4 mg/kg PO SID, administrada por 10 a 14 dias, seguida de uma redução gradual da dose, com o intuito de uma eventual suspensão do tratamento [4]. No entanto, alguns animais necessitam de terapia contínua para evitar recidivas [1]. Durante a manutenção da dose, o animal deve ser monitorizado tanto em relação às lesões cutâneas quanto ao estado geral e, caso seja necessário, ajustar a terapêutica de modo a evitar recidivas. Paralelamente é crucial identificar e minimizar possíveis efeitos adversos, como o desenvolvimento de diabetes mellitus ou agravamento de doenças cardíacas preexistentes. Em alguns casos de formas localizadas de PF, a terapêutica pode ser complementada com glucocorticoides tópicos, como tacrolimus ou ciclosporina [1, 4]. O uso de azatioprina já não é recomendado em gatos devido ao risco de leucopenia e trombocitopenia causadas pela mielossupressão [1]. O Pastel foi tratado com metilprednisolona, seguindo um protocolo semelhante ao descrito. A dose inicial foi de 2,5 mg/kg, administrada por quatro semanas, com uma redução gradual ao longo de nove semanas. As recidivas no PF são comuns e podem ocorrer devido à redução da dose de glucocorticoides, interrupção do tratamento ou à persistência de um fator desencadeante, como o PF induzido por fármacos, em que o animal pode recidivar em consequência da introdução do fármaco responsável [1]. Alguns gatos não respondem adequadamente à terapêutica inicial, exigindo ajustes de dose ou outras abordagens menos comuns. Em situações clínicas específicas, a ausência de resposta clínica, a intolerância a fármacos administrados ou restrições económicas dos tutores podem levar à decisão de eutanasiar o animal. No caso do Pastel, a resposta ao tratamento foi muito satisfatória, sem recidivas durante um ano. A pioderma profunda é uma infeção bacteriana grave que afeta o plano cutâneo profundo, podendo invadir a derme, e por vezes, o tecido subcutâneo. É essencial identificar e controlar a causa que levou à infeção de modo a controlá-la eficazmente [3]. No Pastel, a piodermite profunda da cauda resultou da mordida inicial. Embora raramente provoque bacteremia ou sepsis, é comum a ocorrência de anorexia e/ou pirexia [3]. O tratamento foi feito com cefalexina, escolhida com base nos resultados de cultura bacteriana e teste de suscetibilidade antibiótica. A dose recomendada para casos de piodermite profunda é de 22 a 25 mg/kg BID, e a duração mínima do tratamento varia entre 4 a 6 semanas, podendo prolongar-se por até três semanas após a resolução clínica das lesões. Recomenda- se reavaliação a cada 3 ou 4 semanas para monitorizar a evolução e ajustar a terapia, se necessário [3]. No caso do Pastel, o antibiótico foi administrado durante 6 semanas, com resolução completa das lesões. Em medicina humana, existem dois tipos de pênfigo foliáceo associado a fármacos (DRPF - drug-related pemphigus foliaceus): Induzido por fármacos (drug-induced) – Depende diretamente da exposição ao medicamento, e as lesões desaparecem após a interrupção do uso; desencadeado por fármacos (drug-triggered) – O paciente já teria predisposição para a doença, mas o medicamento atua como gatilho [3]. O DRPF é pouco descrito em medicina veterinária e seus mecanismos ainda não são bem compreendidos. Em gatos, alguns dos fármacos associados incluem cimetidina, econazol, neomicina, triamcinolona, amoxicilina, itraconazol, enxofre de cal, doxiciclina, metimazol, cefovecina, clindamicina, carprofeno, ipodato, imidacloprida [1], moxidectina [6] e ampicilina [7]. Em humanos, a combinação amoxicilina + ácido clavulânico está frequentemente envolvida em reações cutâneas adversas a fármacos. Analogamente, em gatos, os antibióticos parecem estar mais relacionados ao PF induzido por fármacos do que os anti-inflamatórios. Tendo em conta a história clínica do Pastel, a principal suspeita recaiu sobre a amoxicilina/ ácido clavulânico. Como nenhum dos fármacos administrados ao Pastel tinha associação prévia ao PF induzido por fármacos (DRPF) em gatos, foi aplicada a Escala de Naranjo para avaliar a relação causal entre os medicamentos e a reação adversa observada. A Escala de Naranjo, criada em 1981, é um método utilizado para estimar a probabilidade de uma reação adversa a um fármaco, através de um questionário no qual cada resposta recebe uma pontuação específica [9]. O total obtido determina a probabilidade da relação causal (Tabela B1). De acordo com os critérios da escala, uma pontuação entre 1 e 4 sugere que é possível que a reação adversa em causa tenha sido provocada pelo fármaco em causa. No caso do Pastel, tanto a amoxicilina/ácido clavulânico quanto o meloxicam tiveram uma pontuação de 3, indicando que ambos poderiam ter sido responsáveis pelas lesões cutâneas. No entanto, é importante destacar que a Escala de Naranjo foi originalmente desenvolvida para uso em humanos, e alguns de seus critérios (como a resposta a um placebo) não são aplicáveis à medicina veterinária. Para confirmar efetivamente o diagnóstico de PF induzido por fármacos, seria necessária uma provocação farmacológica (reintrodução do medicamento suspeito para verificar se a reação se repete). Contudo, esse teste não é eticamente aceitável, devido aos possíveis riscos à saúde do animal. Contudo, o que inicialmente parecia um PF induzido por fármacos, um ano depois, recidivou. Assim, será mais provável que o quadro corresponda a um PF despoletado por fármacos, no qual o fármaco atuou apenas como um gatilho para uma condição pré-existente. Referências bibliográficas: 1. Bizikova,., &, Burrows, A. (2019). Feline pemphigus foliaceus: original case series and a comprehensive literature review. BMC veterinary research, 15(1):1-15. 2. Olivry, T. (2006). A review of autoimmune skin diseases in domestic animals: I - superficial pemphigus. Veterinary Dermatology, 17(5):291–305. 3. Scott, DW., Mill,r, WH, & Griffin, CE. (Eds.) (2012). Muller and Kirk’s Small Animal Dermatology (7.ª ed.). Philadelphia: W.B. Saunders. 4. Rosenkrantz, WS. (2004). Pemphigus: current therapy. Veterinary Dermatology, 15(2):90-98. 5. Papich, MG. (2023). Antimicrobial agents in small animal dermatology for treating staphylococcal infections. Journal of the American Veterinary Medical Association, 261(1):130-139. 6. Lupion, CG., Pino, EHM., da Silveira, E., Stefanello, CR., Baretta, LT., & Gerardi, DG. (2017). Pênfigo foliáceo em um gato de oito meses de idade: possível reação cutânea adversa a fármacos?. Acta Scientiae Veterinariae, 45:5. 7. Mason, KV., & Day, MJ. (1987). A pemphigus foliaceus-like eruption associated with the use of ampicillin in a cat. Australian Veterinary Journal, 64(7):223–224. 8. Hernández-Salazar A., Rosales, S.P, Rangel-Frausto, S., Criollo, E., Archer-Dubon, C., & Orozco- Topete, R . (2006). Epidemiology of adverse cutaneous drug reactions. A prospective study in hospitalized patients. Archives of medical research, 37(7):899–902. 9. Naranjo, CA., Busto, .U, Sellers,EM., Sandor, P., Ruiz, I., Roberts, EA., Janecek, E., Domecq, C., & Greenblatt, D. J. (1981). A method for estimating the probability of adverse drug reactions. Clinical Pharmacology and Therapeutics, 30(2):239–245. A Anexo A B Figura 1 - Quadro dermatológico do Pastel. Crostas na base da cauda (A) e região perianal (B). Imagens gentilmente cedidas pelo Hospital Veterinário do Porto. Figura 2 - citologia por aposição da lesão da em redor da cauda. Observam-se elevado número de neutrófilos e moderado número de queratinócitos acontolíticos. Imagem gentilmente cedida pelo Hospital Veterinário do Porto Tabela 1. Parâmetros avaliados na escala de Naranjo [9] Sim Não Desconhecido Existem relatos prévios conclusivos desta reação? +1 0 0 A reação adversa ocorreu após a administração do fármaco suspeito? +2 -1 0 A reação adversa melhorou assim que o fármaco foi descontinuado ou foi administrado um antagonista específico do mesmo? +1 0 0 A reação adversa reapareceu quando o fármaco foi reintroduzido? +2 -1 0 Existem outras causas, além do fármaco suspeito, que possam ter provocado a reação adversa? -1 +2 0 A reação reapareceu quando foi administrado um placebo? -1 +1 0 O fármaco foi detetado em concentrações tóxicas no sangue ou noutros fluidos corporais? +1 0 0 A reação foi mais severa quando a dose foi aumentada, ou menos severa quando a dose foi diminuída? +1 0 0 O paciente teve uma reação prévia semelhante ao mesmo fármaco ou a fármacos semelhantes? +1 0 0 A reação adversa foi confirmada de forma objetiva? +1 0 0 Caso clínico nº3: Oncologia – Carcinoma de células escamosas Caracterização do doente: A Brisa era uma gata de 16 anos, esterilizada, europeu comum, cor castanha e branca, e com 6,850kg. Motivo da consulta: Lesão no plano nasal com citologia compatível com carcinoma de células escamosas (CCE). História Clínica: Em 2018, os tutores detetaram uma pequena lesão no plano nasal, que evoluiu de forma mais exuberante em setembro de 2024. Referiram que quando a Brisa espirrava sangrava um pouco. Realizou no seu CAMV habitual citologia compatível com CCE, seguido de tratamento tópico com imiquimod, mas sem resposta satisfatória. Em novembro de 2024 realizou consulta de oncologia. Mantém vacinação e desparasitação atualizadas, era mantida em regime indoor e coabitava com outros gatos. Não fazia medicação diária e não apresentava histórico cirúrgico relevante, além da esterilização. Não apresentava histórico de viagens, nem hábitos de ingestão de objetos estranhos nem tóxicos. Exame físico geral: Atitude normal em estação; estado mental normal; CC de 6/9; movimentos respiratórios costoabdominais superficiais, rítmicos e regulares, com uma frequência respiratória de 38rpm; pulso forte, bilateral e simétrico com uma frequência de 180ppm; membranas rosadas, húmidas e brilhantes, com TRC <2 segundos; grau de desidratação <5%; temperatura de 38,5ºC, reflexo perianal presente, mucosa anal normal e termómetro sem fezes, sangue, muco ou parasitas; linfonodos, palpação abdominal, auscultação torácica sem alterações. A Brisa não apresentava sinais de dor (movimentava-se sem dificuldade e não apresentava desconforto, posições antiálgicas, nem vocalizava antes nem durante a exploração). Exame dirigido (oncologia): Observou-se uma lesão no plano nasal numa zona de pelagem branca, aproximadamente circular, com diâmetro de 3 cm, ulcerada, com crosta e invasão do tecido subcutâneo em cerca de 1 cm (Figura B1). Lista de problemas: lesão ulcerada no nariz Diagnósticos diferenciais: neoplasia do plano nasal (carcinoma de células escamosas (CCE), linfoma, adenocarcinoma, fibrossarcoma), dermatite eosinofílica, lúpus eritematoso discoide, pênfigo foliáceo, queimaduras químicas ou térmicas, autotraumatismo por prurido, lesão traumática. Exames complementares: Hemograma; painel bioquímico sérico pré-eletroquimioterapia sem alterações, mas não existe registo das mesmas, biópsia incisional da lesão: CCE Diagnóstico: CCE Evolução terapêutica: Tendo em consideração o quadro clínico apresentado, foram discutidas com os tutores diversas opções terapêuticas disponíveis (cirurgia, eletroquimioterapia (EQT) e criocirurgia) mas uma vez que pretendiam uma opção menos invasiva optou-se por EQT. Após alguns dias, foi realizada a primeira sessão. A Brisa foi sedada com metadona (0,25 mg/Kg), dexmedetomidina (10 μg/Kg) e alfaxalona (1 mg/Kg), posteriormente foi entubada e oxigenada. De seguida, administrou- se bleomicina, 15mg/m2, por via endovenosa, durante 8 minutos. Localmente, limpou-se o tumor e respetivas margens com compressas com clorexidina e aplicou-se 3-5 pulsos elétricos com o elétrodo L-Shape, por centímetro cúbico do tumor, de modo a cobrir toda a lesão. No momento da alta foram prescritos meloxicam (0,05mg/kg PO SID) até à consulta de reavaliação e buprenorfina (0,02mg/kg PO BID), durante 4 dias consecutivos, e recomendou-se o uso de colar isabelino, uma vez que localmente poderá causar algum desconforto e prurido. Acompanhamento: Cerca de uma semana após o tratamento com EQT, os tutores relataram que a Brisa apresentava dificuldade respiratória, com frequência respiratória diminuída, com espirros e mais prostrada, e detetaram-se estridores respiratórios. As narinas encontravam-se obstruídas com secreções nasais. Realizou-se uma radiografia torácica que não apresentou alterações. Recomendou- se a realização de nebulizações para ajudar a humedecer as crostas, limpar com compressas e soro sem criar atrito ou abrasão. Prescreveu-se buprenorfina (0,02mg/kg PO BID) e gabapentina (5mg/kg PO BID) em sos. Era expectável que o quadro se mantivesse por mais 2 semanas até a crosta cair ou diminuir. Cerca de duas semanas após o tratamento com EQT, realizou-se a consulta de reavaliação e a Brisa apresentava boa atitude, a comer sozinha, no entanto, mantinha ruído inspiratório superior e respirava esporadicamente com a boca aberta. A lesão encontrava-se com crosta intermédia, sem sinais de infeção mas com necrose local. Foi para casa com prednisolona (0,5mg/kg PO BID) durante 5 dias. Realizou nova consulta de acompanhamento, um mês após a EQT, com ótima resposta local e com exposição dos cornetos nasais. Devido ao risco de lesão dos cornetos nasais optou-se por não realizar nova sessão de EQT e manter a vigilância. Discussão: O carcinoma de células escamosas (CCE) é um tumor maligno da epiderme que se origina nos queratinócitos e corresponde a cerca de 15% dos tumores cutâneos em gatos [2]. Este tipo de neoplasia afeta maioritariamente animais mais velhos, entre os 10 e os 12 anos de idade. Algumas raças, como o Siamês, o Himalaio e o Persa, parecem apresentar menor predisposição para o desenvolvimento deste tumor [1]. Geralmente, o CCE manifesta-se sob a forma de placas, projeções papilares e/ou lesões crateriformes, frequentemente acompanhadas por eritema dos tecidos circundantes, ulceração e formação de crostas [1]. O principal fator responsável pelo aparecimento desta neoplasia é a exposição prolongada à radiação ultravioleta (UV), que causa mutações nos genes responsáveis pelo controlo da reparação e replicação do ácido desoxirribonucleico (DNA), bem como na divisão e motilidade celulares, incluindo o gene p53 [1]. Consequentemente, o CCE ocorre com maior frequência em regiões corporais com pelo branco, pouco pigmentado ou menos denso, o que confere aos gatos de pelagem branca um risco aumentado para o desenvolvimento deste tumor. As zonas mais afetadas incluem o nariz (como no presente caso), as orelhas, as pálpebras e as regiões temporais [1,2]. A exposição aos raios UV está também associada ao desenvolvimento de dermatites actínicas, que podem evoluir gradualmente para um CCE in situ – uma fase inicial em que o tumor ainda não ultrapassou a membrana basal. Com a progressão, estas lesões podem tornar-se invasivas, originando o CCE propriamente dito. Suspeita-se que, tal como nos humanos, o papilomavírus felino possa estar envolvido no desenvolvimento do CCE in situ. Em alguns gatos, este tumor pode manifestar-se de forma multifocal, designada por carcinoma de Bowen, podendo afetar qualquer parte do corpo, incluindo áreas pigmentadas e com pelo abundante [1]. Histologicamente, o CCE é composto por queratinócitos desorganizados que formam ilhas, cordões e trabéculas, invadindo a membrana basal da epiderme e disseminam para a derme. Nos tumores mais diferenciados, é frequente a deposição de fibras concêntricas de queratina no centro das ilhas de queratinócitos, resultando na formação de pérolas de queratina, uma descoberta valiosa para o diagnóstico histológico. Geralmente, as células neoplásicas são grandes, de formato ovalado, e apresentam núcleos hipercromáticos. Em tumores menos diferenciados e de alto grau, observa-se anisocitose e pleomorfismo nuclear com maior frequência. Este carcinoma apresenta um comportamento invasivo localmente, provocando inflamação e destruição tecidual intensa [1]. No caso da Brisa, a lesão no plano nasal apresentava características altamente sugestivas de CCE, devido ao seu caráter ulcerativo e destrutivo. Para confirmar o diagnóstico, realizou-se biópsia incisional, uma vez que este método é mais eficaz do que a citologia por aspiração ou aposição, que, na maioria dos casos, revela apenas inflamação, hemorragia e ulceração, resultados inespecíficos que podem estar presentes em outras lesões além das neoplásicas [2,3]. É comum a zona da lesão apresentar um aspeto heterogéneo e, por essa razão, deve-se recolher amostras de diferentes áreas para garantir uma caracterização histológica mais representativa [2]. Embora as metástases sejam raras, quando ocorrem, geralmente afetam os linfonodos regionais e os pulmões. Assim, pode-se considerar a realização de citologia ganglionar e radiografias torácicas para excluir essa possibilidade. Contudo, estes exames geralmente não evidenciam alterações [1,3]. No caso da Brisa, não foi realizada citologia ganglionar uma vez que os linfonodos apresentavam-se sem alterações durante a exploração. O estadiamento local é essencial para definir a abordagem terapêutica, sendo que a tomografia computorizada (TC) ou a ressonância magnética (RM) ajudam a determinar a extensão da lesão e a planear as margens cirúrgicas, caso se opte pela excisão. No entanto, no presente caso, não foi realizada TC nem intervenção cirúrgica devido à preferência dos tutores por uma abordagem minimamente invasiva, considerando a idade avançada da gata. O estadiamento local dos CCE seguem a classificação TNM da Organização Mundial de Saúde (OMS) para tumores sólidos [1] (Tabela A1). De modo geral, a escolha do tratamento e o seu sucesso dependem do estádio clínico, da extensão e da localização do tumor. Quanto mais precoce for a intervenção terapêutica, maior será a possibilidade de sucesso [4]. Em gatos com tumores invasivos no nariz, a recessão do plano nasal é frequentemente recomendada. A excisão cirúrgica radical do CCE proporciona um ótimo controlo local da doença e elevadas taxas de cura, desde que sejam alcançadas margens cirúrgicas limpas [3]. Contudo, devido à localização anatómica frequente desse tumor, atingir margens limpas pode ser complexo, especialmente nos estádios T3 e T4, além de que o procedimento pode ter implicações estéticas e funcionais significativas para o animal e tutor. Assim, é necessário ter em consideração terapias alternativas de ação local, como criocirurgia, radioterapia, terapia fotodinâmica e EQT [3,4]. Essas abordagens podem ser combinadas em um protocolo multimodal para otimizar os resultados terapêuticos [3]. Em contrapartida, a quimioterapia sistémica apresenta eficácia limitada em gatos com CCE, não sendo considerada uma opção de primeira linha [4]. No caso da Brisa, as principais opções terapêuticas consideradas foram: excisão cirúrgica e a EQT. A radioterapia foi excluída devido à sua indisponibilidade em Portugal, enquanto a crioterapia tende a ser mais efetiva em lesões superficiais e de menor dimensão [1,3]. Após discussão com os tutores, estes optaram pela EQT uma vez que esta técnica era menos invasiva e apresentava um custo reduzido e um tempo de recuperação mais curto [4]. A EQT aplica pulsos elétricos diretamente sobre o tumor, provocando um aumento temporário e reversível na permeabilidade das membranas das células neoplásicas. Desta forma, potencia-se a captação celular de moléculas, como os fármacos quimioterápicos. Esse fenómeno, chamado eletroporação, é o principal mecanismo pelo qual a EQT atua [1,4,5]. A intensificação da captação de fármacos quimioterápicos, como a bleomicina, amplifica seu efeito citotóxico. Assim, a EQT pode ser utilizada em diferentes tipos de tumores, desde que a sonda que gera os pulsos elétricos consiga ter acesso. Por outro lado, esta técnica também permite o tratamento de tumores resistentes à quimioterapia convencional uma vez que facilita a entrada dos fármacos nas células [5]. Efetivamente, aquando a penetração do quimioterápico, a aplicação dos pulsos elétricos provoca um bloqueio temporário e imediato da circulação sanguínea na área alvo (vascular-lock), ao aumentar a permeabilidade vascular, ao mesmo tempo que provoca a vasoconstrição. A retenção do fármaco no local, o comprometimento da irrigação tumoral e, consequentemente, a quebra do fornecimento de oxigénio e nutrientes e a hemóstase temporária são alguns dos benefícios secundários [4,5]. Para além disso, a EQT estimula uma resposta imune local ao promover a libertação massiva de antigénios tumorais, favorecendo a eliminação das células neoplásicas [4]. Os fármacos mais utilizados para EQT são a bleomicina, a cisplatina e o cálcio [4,5]. Tanto a bleomicina quanto a cisplatina são altamente hidrofílicas, ou seja, têm dificuldade em atravessar a membrana celular naturalmente, mas tornam-se extremamente tóxicas assim que penetram nas células, o que as torna ideais para esse tipo de terapia. A bleomicina apresenta vantagens relativamente à cisplatina, entre as quais a menor toxicidade sistémica, tornando-se mais segura para gatos. Em constraste, a cisplatina é altamente nefrotóxica e contraindicada, pois pode causar insuficiência renal e toxicidade pulmonar. Além disso, a bleomicina demonstra maior eficácia em tumores superficiais, como o CCE localizado no nariz da Brisa, enquanto que a cisplatina é mais indicada em tumores profundos e sólidos em cães. Outro aspeto relevante é a melhor absorção da bleomicina com a eletroporação. A cisplatina, por ser uma molécula menor, não beneficia tanto da eletroporação. Por fim, a bleomicina causa menos efeitos adversos locais, como inflamação e necrose, em comparação com a cisplatina quando se usa em EQT [6]. O mecanismo de ação da bleomicina baseia-se na quebra da cadeia do DNA, o que leva à apoptose celular antes que se consigam replicar. A dose recomendada é de 15000UI/m2 [5]. A EQT é especialmente indicada para tumores superficiais e localmente invasivos, como CCE e sarcomas de tecidos moles em gatos, mastocitomas, neoplasias perianais ou dos sacos anais, CCE orais ou melanomas em cães [3,4]. Quando usada isoladamente, pode ter um objetivo curativo, com remissão completa do tumor, ou paliativo, para reduzir o seu volume e melhorar a qualidade de vida do paciente. Adicionalmente, pode ser aplicada de forma neoadjuvante ou adjuvante em associação com cirurgia, otimizando o tratamento de casos mais avançados [5]. A resposta ao tratamento depende da localização e extensão do tumor. Em tumores que envolvem a placa cribiforme, a região retrobulbar ou os seios paranasais, a profundidade das lesões pode dificultar a aplicação eficaz dos pulsos elétricos [5]. Nestes casos, recomenda-se uma excisão cirúrgica parcial antes da EQT ou realização de múltiplas sessões para alcançar toda a área afetada [3,5]. A evolução do tumor nas semanas seguintes ao tratamento ajuda a determinar se a cobertura foi suficiente [5]. Os resultados clínicos da EQT são bastante promissores, com um estudo retrospetivo de março de 2021 que avaliou a monoterapia com EQT em 61 gatos com CCE no plano nasal e constatou que 96,7% dos animais responderam ao tratamento, com remissão total do tumor em 65,5% dos casos [4]. Comparativamente a outras modalidades terapêuticas, a EQT destaca-se por permitir uma destruição mais seletiva das células tumorais, preservando os tecidos e células saudáveis ao redor, o que ajuda a minimizar os efeitos adversos e a preservar a qualidade de vida do paciente [5]. Tal como em qualquer tratamento, não está isenta de efeitos adversos. Assim, é necessário que o animal seja profundamente sedado ou anestesiado para que o procedimento seja seguro, tanto para o paciente e para o médico veterinário. Por isso, recomenda-se a realização de um conjunto de análises bioquímicas séricas e hemograma [4]. Efetivamente, a bleomicina é metabolizada por enzimas presentes em vários tecidos, sendo que a pele e os pulmões - que apresentam quantidades menores destas enzimas - são os mais suscetíveis em casos de sobredosagem [5]. Localmente, a EQT pode causar alguns efeitos adversos tais como: alopécia, despigmentação, edema e necrose em diferentes graus; em casos mais severos, pode ocorrer perda de tecido. A toxicidade local tende a aumentar com o tamanho do tumor, pois áreas maiores necrosadas resultam em maior toxicidade local [4]. A inflamação que pode acompanhar o tratamento é particularmente preocupante em tumores faciais, especialmente se próximos à cavidade oral ou nasal, devido ao risco de obstrução das vias respiratórias. E em especial para os gatos, o cheiro é crucial para que se alimentem. E além disso, isso poderia concomitantemente afetar o olfato e o apetite. Por isso, é fundamental manter uma monitorização rigorosa do paciente e a prescrição de um anti-inflamatório [5]. A Brisa teve alta no próprio dia com meloxicam e buprenorfina para maior controlo da dor. Contudo, uma semana após o tratamento, foi necessário introduzir terapia com glucocorticoide, pelo seu efeito anti-inflamatório mais marcado, uma vez que apresentava alguma dificuldade respiratória e secreções nasais. Efetivamente, a bleomicina pode provocar efeito cumulativo elevado podendo provocar fibrose pulmonar. Apesar de em gatos ainda não ter sido estabelecido o valor, a dose máxima recomendada em cães é de 200.000UI/m2. Por isso, é crucial uma boa anamnese e recolha da história pregressa do animal de modo a perceber se existe histórico de alergia, hipersensibilidade ou intolerância à bleomicina. [5]. A Brisa apenas tinha feito como primeira abordagem tratamento com imiquimod recomendado por outro CAMV, mas sem resposta terapêutica satisfatória. O imiquimod atua como modulador imunológico, uma vez que ao ser aplicado na lesão, estimula os recetores Toll- like, principalmente o TLR7, na pele o que induz a produção de citocinas e consequentemente desencadeia uma resposta imune local que promove a apoptose das células tumorais. É indicado para lesões num estádio inicial, muito superficiais, mas apresenta um elevado risco de ingestão [7]. A Brisa foi observada 30 dias após a sessão de ETQ com uma resposta terapêutica bastante positiva, apesar da exposição dos cornetos nasais. Por esta razão, optou-se por não realizar uma segunda sessão de ETQ e manter apenas as consultas de seguimento. De um modo geral, recomenda- se o acompanhamento aos 1º, 2º, 4º e 6º meses após o procedimento. Após a fase inicial de edema, crostas intensas, o tumor diminui progressivamente. Em alguns casos, o tumor pode apresentar uma redução seguida de crescimento (escape tumoral), situação na qual é indicada uma nova sessão de EQT o mais breve possível [5]. Portanto, é essencial monitorizar de perto a evolução do tumor para decidir se sessões adicionais serão benéficas. É importante salientar que mesmo os pacientes que alcançam remissão total podem apresentar recidivas; em um estudo, 22% dos animais que obtiveram remissão total relataram recidivas entre 29 e 302 dias após o tratamento [4]. Referências bibliográficas: 1. Hauck, ML., & Oblak, ML. (2020). Tumors of the Skin and Subcutaneous Tissues. In Vail DM, Thamm DH, Liptak JM (Eds.). Withrow and MacEwen’s Small Animal Clinical Oncology (6ª ed., pp 352-366). Pensilvânia, Estados Unidos da América: W.B. Saunders. 2. Murphy, S. (2013). Cutaneous squamous cell carcinoma in the cat: current understanding and treatment approaches. Journal of feline medicine and surgery, 15(5), 401–407. 3. Kudnig, ST. &, Séguin, B. (Eds.) (2022). Veterinary Surgical Oncology (2ª. ed.). Nova Jérsia, Estados Unidos da América: John Wiley & Sons Inc. . Owen., LN. (1980). TMN classification of tumors in domestic animals. Geneva: World Health Organization (pp:46-47) 4. Simčič, P., Pierini, A., Lubas, G., Lowe, R., Granziera, V., Tornago, R., Valentini, F., Alterio, G., Cochi, M., Rangel, M. M. M., de Oliveira, K. D., Ostrand Freytag, J., Quadros, P. G., Sponza, E., Gattino, F., Impellizeri, J. A., & Torrigiani, F. (2021). A Retrospective Multicentric Study of Electrochemotherapy in the Treatment of Feline Nasal Planum Squamous Cell Carcinoma. Veterinary sciences, 8(3), 53. 5. Tellado, M., Mir, LM., & Maglietti, F. (2022). Veterinary Guidelines for Electrochemotherapy of Superficial Tumors. Front. Vet. Sci. 9:868989. 6. Nelson, RW., & Couto, CG. (2019). Small Animal Internal Medicine (6ª. ed.). Missouri, Estados Unidos da América: Elsevier. 7. Nóbrega, F. S., et al. (2020). Use of imiquimod 5% cream for feline actinic keratosis and superficial squamous cell carcinoma: A case series. Veterinary Dermatology. Anexo B B A Figura 1 Evolução da lesão tumoral da Brisa Aspeto do tumor aquando da primeira consulta (A) e 1 mês após a sessão de eletroquimioterapia (B). Imagens gentilmente cedidas pelo Hospital Veterinário do Porto. Tabela 1. Classificação TNM da Organização Mundial de Saúde (OMS) para tumores sólidos [1]. Estadio Caracterização 0 Carcinoma in situ (sem invasão da membrana basal) I Tumor com <2cm, superficial ou exofítico II Tumor com 2-4cm ou com invasão mínima dos tecidos subjacentes, independentemente das dimensões III Tumor com >4cm ou que invade a hipoderme IV Tumor que invade outras estruturas anatómicas (fáscias, músculo, osso ou cartilagem) Caso clínico nº4: Neurologia – Meningite-arterite responsiva a esteroides Caracterização do doente: A Lilo era uma cadela de 7 meses, não esterilizada, raça Boxer e 23,400kg. Motivo da consulta: Foi reencaminhada de outro CAMV por prostração, febre, hiporexia há 2 dias não responsiva ao tratamento. O início foi súbito, com agravamento progressivo, e os tutores não referiram fatores agravantes ou atenuantes. História clínica: A Lilo encontrava-se a realizar o protocolo vacinal e apresentava a desparasitação interna em atraso, embora a externa estivesse atualizada. Tinha acesso ao exterior (jardim) e coabitava com um cão de raça Boxer, adulto e saudável. A dieta consistia em ração seca Royal Canin Puppy®. Não havia relato de comorbilidades, antecedentes médico-cirúrgicos ou contacto com tóxicos, medicamentos ou objetos estranhos. A Lilo foi avaliada no CAMV habitual porque apresentava prostração, hiporexia e febre há 2 dias, com desconforto à palpação na região lombar e abdominal. Estava com temperatura (Tº) de 39,7ºC. O hemograma revelou leucocitose por linfocitose e neutrofilia e ligeira diminuição do hematócrito (htc). Ecograficamente, a bexiga apresentava-se bastante distendida assim como o cólon, restantes órgãos sem alteração. Foram prescritos enrofloxacina e robenacoxib. Após 2 dias foi reavaliada e uma vez que não apresentava melhorias foi reencaminhada para consulta de urgência no Hospital Veterinário do Porto (HVP). Exame físico geral: atitude alterada em estação e em marcha (não foi avaliada em decúbito), apresentando rigidez cervical, marcha rígida e relutância ao movimento; estado mental normal, com temperamento equilibrado; CC de 4/9; movimentos respiratórios costoabdominais, profundos, rítmicos e regulares, com uma frequência de 50rpm; pulso forte, bilateral e simétrico com uma frequência de 130ppm; mucosas rosadas, húmidas e brilhantes, com TRC <2 segundos; grau de desidratação <5%; To=40ºC, reflexo perineal presente, mucosa anal sem tumefações e termómetro sem fezes, sangue, muco ou parasitas; sem corrimento vulvar; linfonodos normais à palpação; ligeira tensão à palpação abdominal e cervical; auscultação cardíaca normal. Exame dirigido (neurológico): estado mental normal; postura alterada, com ventroflexão ligeira do pescoço, rigidez cervical; marcha anormal e relutância ao movimento; tónus muscular normal; as reações posturais não foram avaliadas; reflexos espinhais normais; pares cranianos normais; sensibilidade profunda e superficial nos membros preservada e hiperestesia cervical, com vocalização na palpação das vértebras cervicais e músculos paraespinhais e na manipulação ventrodorsal e laterolateral do pescoço. Lista de problemas: Pirexia, prostração, dor cervical, leucocitose. Diagnósticos diferenciais: meningite infeciosa, meningite-arterite responsiva a esteroides (MARE), meningoencefalite granulomatosa, discoespondilite, osteomielite vertebral, empiema/ abcesso, fratura vertebral, luxação vertebral, contusão da medula espinal, hemorragia espinhal/ medular, hérnia discal de Hansen I ou II, síndrome de Wobbler, quisto sinovial, polimiosite, poliarterite, neoplasia (vertebral, extradural, intradural extramedular, intradural intramedular); causas infeciosas virais: esgana, hepatite infeciosa canina; causas infeciosas bacterianas: leptospirose, pielonefrite. Exames complementares: Hemograma: Leucocitose por neutrofilia (18,405x103 células/μL; ref: 3,620-11,320 células/μL) e monocitose (2,631x103 células/μL; ref: 0,140-1.970 células/μL) (Tabela C1) Painel bioquímico sérico: aumento da atividade da fosfatase alcalina (ALP) (171 U/L; ref: 13-83 U/L) (Tabela C2) Ionograma: hipocalémia (3,4 mEq/L; ref: 3,8-5.0 mEq/L); (Tabela C3) Proteína C reativa (CRP): >7 mg/dl (ref: <1 mg/dL); Ecografia abdominal: esplenomegalia sem alterações focais, cólon distendido, restante abdómen sem alterações; Radiografia cervical: sem alterações significativas; Urianálise: Proteinúria (2+) e hematúria (2+); Citologia do líquido cefalorraquidiano (LCR): moderada pleocitose neutrofílica (89 células/μL; ref: 0-5 células/μL) e aumento das proteínas totais (77mg/dL; ref: 14-30mg/dl) Diagnóstico: MARE Terapêutica e evolução: A Lilo foi hospitalizada para tratamento de suporte, nomeadamente controlo de temperatura, e investigação. Dia 1: Após cateterização endovenosa, iniciou-se fluidoterapia a uma taxa de manutenção (36ml/h), ampicilina (10 mg/kg, IV, TID), metadona (0,4mg/kg, IV, TID), paracetamol (10mg/kg, IV, BID); Dia 2: A Lilo passou a apresentar também ligeiro desconforto abdominal. Após o ionograma, devido às alterações apresentadas, suplementou-se o soro com KCL (1mEq/h); após a recolha de LCR adicionou-se metilprednisolona (2,55mg/kg BID, IV) à terapêutica instituída. Dia 3: A Lilo não apresentava sinais de dor e comia com apetite. Após controlo de ionograma, verificou-se a normalização dos valores de potássio, pelo que se suspendeu a suplementação. Dia 4: O animal manteve-se confortável e perante a evolução teve alta. Perante o diagnóstico suspendeu-se a ampicilina. Para casa prescreveu-se prednisolona (0,9mg/kg BID, PO) e omeprazol (0,9mg/kg BID, PO). Recomendou-se uma consulta de controlo ao fim de 10 dias. Acompanhamento: Na consulta de controlo, a Lilo apresentava um exame físico sem alterações, não demonstrava sinais de dor cervical, não apresentava pirexia e os tutores não referiram efeitos secundários da corticoterapia. Controlou-se a CRP, que tinha normalizado (0,6mg/dL; ref<1). O plano de tratamento estabelecido consistia na diminuição progressiva da corticoterapia ao longo de 6 meses, controlos clínicos e da CRP. Nesta consulta, foi prescrita a primeira redução da corticoterapia (prednisolona 0,65mg/kg BID PO). Na reavaliação mensal subsequente, manteve a diminuição significativa da CRP e melhoria clínica, apesar dos tutores terem interrompido a terapêutica. Face à evolução favorável, manteve-se o plano de tratamento, com uma segunda redução da corticoterapia (prednisolona 0,54mg/kg BID PO), tendo-se alertado os tutores para a importância de não interromper a terapêutica sem indicação médica. Na última reavaliação, o exame físico manteve-se sem alterações, à exceção de um aumento de peso significativo. Uma vez que a CRP aumentou (8; ref: <12) optou-se por manter a dose de prednisolona. Recomendou-se manter as consultas de controlo e alertar caso haja alguma alteração no comportamento da Lilo. Discussão: A dor cervical e a prostração eram os principais sinais clínicos da Lilo quando realizou a consulta de urgência. A identificação da dor em medicina veterinária pode ser bastante complexa, uma vez que a tolerância e a manifestação da dor variam consideravelmente entre animais. Assim que a dor é detetada é essencial localizar a origem para facilitar a elaboração de diagnósticos diferenciais e exames complementares [1]. O exame físico geral e neurológico permite determinar a localização da lesão como extracraniana, sendo consensual a divisão funcional da medula espinhal nos segmentos cervical (C1- C5), cervicotorácico (C6-T2), torocolombar (T3-L3) e lombossagrado (L4-S3) [1]. A dor cervical é uma manifestação tanto de doenças neurológicas como de outras condições não relacionadas com o sistema nervoso. Algumas alterações clínicas podem indicar dor espinhal, tais como: decréscimo da atividade, estado mental deprimido, alterações comportamentais, ventroflexão, rigidez, aumento do tónus e espasmos musculares cervicais, dor na palpação das vértebras e musculatura cervicais, salivação, taquicardia [1]. A dor cervical constitui um sinal clínico comum em casos de inflamação ou compressão da medula espinhal na região cervical. Como a medula espinhal não possui nocicetores, a dor tem origem nas estruturas anatómicas envolventes, como meninges, raízes nervosas, ligamentos, músculos epaxiais, ossos ou articulações. Adicionalmente, doenças intracranianas também podem manifestar- se com dor cervical. A tabela C4 apresenta possíveis causas de dor cervical em cães [2]. Salienta-se, com exceção da meningite, poliartrite e polimiosite, a maioria destas condições são frequentemente acompanhadas por outros sinais neurológicos [1]. Com base na apresentação clínica da Lilo, o principal diagnóstico diferencial era inflamação das meninges. Estas estruturas são compostas por três membranas de tecido conjuntivo, dura-máter, aracnoide e pia-máter, que revestem o cérebro, a medula espinhal e as raízes dos nervos espinhais. A dura-máter, a camada mais externa, destaca-se pela sua espessura e rigidez. Já a pia-máter adere intimamente à superfície cerebral e medular, estando estruturalmente ligada à aracnoide por finas trabéculas. O espaço subaracnoide, localizado entre a pia-máter e a aracnoide, contém o LCR [3]. As meningites podem ser causadas por agentes infeciosos, como bactérias, vírus da esgana e da raiva, fungos como Cryptococcus, doenças parasitárias nomeadamente Leishmania, Toxoplasma, Neospora, Borrelia, Rickettsia, Anaplasma e Ehrlichia, ou ainda resultar da migração aberrante de parasitas. No entanto, estes processos inflamatórios podem ocorrer sem uma causa aparente, sendo atribuídos a mecanismos imunomediados. Neste grupo, inclui-se a MARE, a meningoencefalite eosinofílica e meningoencefalites de etiologia desconhecida. As meningoencefalites de origem desconhecida englobam meningoencefalite granulomatosa, a meningoencefalite necrotizante e a leucoencefalite necrotizante, cujo diagnóstico definitivo depende da análise histopatológica [2]. Perante estas condições, a MARE era o diagnóstico mais provável da Lilo, uma vez que é a inflamação da meninge mais frequentemente diagnosticada em cães com menos de 18 meses que se apresentam com febre e dor cervical [4]. A MARE pode afetar cães de qualquer raça, embora pareça haver algumas raças com predisposição genética como Boxer, Beagle, Boieiro de Berna e Retriever da Nova Escócia [4]. Outras raças frequentemente diagnosticadas incluem German Shorthaired Pointer, Border Collie, Springer Spaniel Inglês, Golden Retriever, Jack Russell Terrier, Petit Griffon, Weimaraner, Whippet e Wirehaired Pointing Griffon [4]. Até o momento, não há evidências de predisposição relacionada ao sexo [4]. A etiologia da MARE permanece ainda pouco compreendida, sendo a hipótese mais consensual a de vasculite imunomediada de origem desconhecida [1]. Esta teoria é suportada pela ausência de agentes infeciosos ou tóxicos e a resposta favorável à terapia com imunossupressores reforçam essa hipótese [4]. O mecanismo imunológico da MARE é caracterizado por uma resposta humoral mediada por células Th2, que produzem níveis elevados das citocinas IL-4, IL-5 e IL-10. Estas citocinas promovem o recrutamento e a diferenciação de linfócitos B em plasmócitos, resultando numa produção exacerbada de imunoglobulina A (IgA), um marcador característico da doença [1,4]. Adicionalmente, a vasculite sistémica observada em cães afetados parece estar associada à sobre-expressão do fator de crescimento endotelial e do ligando CD40L. Foi ainda descrito, nesses cães, um aumento da expressão dos recetores TLR-4 e TLR-9 em monócitos, bem como uma regulação exacerbada do sistema endocanabinoide, fatores que contribuem para a intensificação do processo inflamatório [4]. Relativamente à patogénese da MARE, uma das descobertas mais recentes consiste na deteção de armadilhas extracelulares de neutrófilos (NET) nas meninges e artérias de cães afetados [4]. A NET representa um mecanismo de defesa dos neutrófilos contra agentes patogénicos, compostas por cromatina, proteínas granulares e citoplasmáticas, com a função de aprisionar e destruir esses agentes [5]. A sua formação é estimulada por níveis elevados de citocinas, como a IL-17, e pela exposição a antigenios celulares. Além disso, a enzima responsável pelo metabolismo das NETs apresenta atividade reduzida em cães com MARE, o que pode comprometer a eliminação eficaz dessas estruturas. Esse desequilíbrio pode contribuir para a inflamação persistente característica da doença [4]. Relativamente à sintomatologia, a febre, presente em aproximadamente 80% dos cães afetados [4], e a dor cervical são os sinais mais comuns na fase aguda. Em geral, o exame neurológico não revela anormalidades significativas. No entanto, se o tratamento for tardio ou inadequado, a doença pode evoluir para uma forma crónica [1,4]. Nessa fase, a inflamação prolongada das meninges leva à fibrose e mineralização, podendo, em casos raros, comprometer o fluxo do LCR e resultar em hidrocefalia. Os cães com MARE crónica também podem apresentar défices motores devido a hemorragias subaracnoides [1], alterações nos pares cranianos, como diminuição ou ausência da reação da ameaça, estrabismo e anisocoria, além de convulsões associadas a lesões multifocais e extensão intracraniana da inflamação [4]. Outras manifestações menos comuns incluem escoliose, cardiopatias secundárias à vasculite das artérias cardíacas (com consequente miocardite), poliartrite imunomediada [4] e glomerulonefrite [1]. As principais alterações analíticas incluem leucocitose por neutrofilia com desvio à esquerda [1,4], hipoalbuminemia e hiperglobulinemia [4]. Os métodos de diagnóstico por imagem, como a radiografia e a ecografia abdominal, podem ser úteis para excluir alguns diagnósticos diferenciais. A ressonância magnética (RM) é a técnica de imagem mais eficaz para avaliar o cérebro e as meninges. Embora o valor diagnóstico na MARE ainda não seja totalmente claro, os estudos demonstram que 98,6% dos cães com MARE apresentaram alterações na RM, incluindo aumento do contraste das meninges, da membrana sinovial das facetas articulares e dos músculos cervicais [6]. Essas alterações, contudo, não são exclusivas da MARE [7]. Apesar dessas limitações, a RM combinada com a análise de LCR, representa o método de diagnóstico mais completo [4]. A análise do LCR é essencial para confirmar ou excluir causas infeciosas, podendo incluir citologia, imuno-histoquímica, cultura microbiológica e técnicas de biologia molecular [2]. O diagnóstico é compatível com MARE quando se observa pleocitose neutrofílica (com mais de 75% de neutrófilos não degenerados), aumento do teor proteico e ausência de agentes infeciosos [1,2,4]. A colheita de LCR deve ser realizada, preferencialmente, antes do início da terapia imunossupressora, pois, em apenas 24 horas, o LCR pode já ter normalizado ou apresentar predomínio de células mononucleares, dificultando a interpretação dos resultados [2]. No caso da Lilo, a principal suspeita era meningite. De modo a confirmar o diagnóstico foi proposto aos tutores TC, uma vez que o hospital não dispõe de RM, e recolha de LCR. Os tutores optaram apenas pela análise do LCR, que revelou uma moderada pleocitose neutrofílica e aumento de proteínas totais. Não foram realizadas outras análises complementares como citologia, imuno- histoquímica ou outros. Até ao momento não existe um biomarcador específico para o diagnóstico ante-mortem da MARE [4]. Por esse motivo, recorre-se ao estudo de biomarcadores de doença inflamatória não- infeciosa do sistema nervoso central (SNC). As proteínas de fase aguda são moléculas cuja concentração no organismo varia pelo menos 25% em resposta à inflamação sistémica, sendo reguladas por citocinas pró-inflamatórias. Embora sejam altamente sensíveis, a sua especificidade é limitada, pois os seus níveis alteram-se independentemente da origem do processo inflamatório [7]. Entre estas proteínas, a CRP destaca-se por apresentar um aumento significativo no plasma e no LCR de cães com MARE. No entanto, devido à sua baixa especificidade, a avaliação da CRP como ferramenta diagnóstica requer a exclusão de outras causas de inflamação sistémica. Apesar dessa limitação, tanto a CRP quanto a proteína amilóide A sérica, outra proteína de fase aguda, refletem a evolução da doença, diminuindo com o tratamento e aumentando em casos de recidiva. Assim, a monitorização da CRP auxilia no acompanhamento clínico e na avaliação da resposta terapêutica [1,7]. No caso da Lilo, verificou-se um aumento significativo da CRP, tal como era expectável. A MARE também caracterizada pela produção exacerbada de IgA, cuja concentração encontra- se, em mais de 90% dos cães afetados, elevada, tanto no plasma quanto no LCR. Contudo, um estudo avaliou as concentrações séricas e no LCR de animais com MARE e outras patologias inflamatórias do SNC, e identificaram-se diferenças significativas na concentração de IgA no plasma, entre os dois grupos, mas não no LCR. Desta forma, o doseamento de IgA no LCR não deve ser utilizado para diagnóstico de MARE isoladamente [7]. Além disso, também não permite avaliar a evolução da resposta terapêutica, dado que permanece elevada após o tratamento e remissão da doença [7]. Encontram-se outros biomarcadores em investigação, como citocina, células imunes e marcadores genéticos, mas não demonstram sensibilidade e especificidade suficientes para serem utilizados como biomarcadores. O tratamento da MARE baseia-se na administração de imunossupressores, sendo os corticosteroides a primeira linha terapêutica [2]. Contudo, antes de iniciar a terapia, é imperativo excluir possíveis causas infeciosas [1]. Os corticosteroides atuam de forma inespecífica sobre o sistema imune, inibindo a produção de citocinas, prostaglandinas e leucotrienos, além de reduzir a infiltração de células inflamatórias através da barreira hematoencefálica, minimizando os danos teciduais [4]. A prednisolona é frequentemente a primeira escolha devido à sua maior biodisponibilidade em comparação com a prednisona [2]. Em cães com sinais clínicos moderados a graves e pleocitose no LCR superior a 200 células/μL, recomenda-se a administração de prednisolona durante, pelo menos, seis meses, iniciando com 2mg/kg BID, dois dias, seguida de 2 mg/kg SID 1-2 semanas [1,4]. Se o paciente permanecer estável após duas semanas a dose pode ser reduzida para 1 mg/kg SID durante 4-6 semanas. O acompanhamento mensal é essencial para ajustar gradualmente a dosagem. Recomenda- se uma nova análise do LCR após seis a oito semanas de tratamento ou em caso de recidivas clínicas ou laboratoriais. Antes da suspensão da terapia, a dose esperada era de 0,5 mg/kg a cada 48 a 72 horas [4]. Em cães com sintomas leves e pleocitose inferior a 200 células/μL, pode-se considerar o uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), desde que o paciente seja monitorizado de perto. Caso ocorra declínio do quadro clínico, devem-se introduzir-se corticosteroides [4]. A taxa de mortalidade associada à MARE varia entre 4% e 8% [4]. De maneira geral, a resposta ao tratamento é excelente, com taxas de remissão sustentada atingindo 80% dos casos, especialmente quando o prognóstico é favorável quando o diagnóstico e o tratamento são instituídos precocemente [1]. No entanto, quando a terapia não é administrada corretamente ou o paciente não responde adequadamente aos corticosteroides, pode ocorrer a evolução para a forma crónica, aumentando o risco de recidivas e tornando o prognóstico mais reservado. Por este motivo, a adesão ao tratamento e a monitorização, tanto clínica quanto laboratorial, rigorosas são fundamentais para o sucesso terapêutico [4]. Em casos de recidiva, recomenda-se a reintrodução da dose inicial de prednisolona (2 mg/kg BID) e adicionar um imunossupressor adjuvante, como azatioprina [1], ciclosporina, leflunomida, mofetil micofenolato ou citarabina [2,4]. Na consulta de seguimento, realizada cerca de 10 dias após a alta, a Lilo apresentava ausência de sinais de dor, apetite normal e bom estado geral, sem relato de efeitos adversos da corticoterapia. Uma vez que a Lilo não apresentava efeitos adversos, estava com boa resposta clínica e analítica, dado que a CRP tinha diminuído (6,0mg/L; ref 0-12), decidiu-se diminuir a dosagem de prednisolona (prednisolona 1,3mg/kg dia PO). Num segundo controlo, passado 1 mês, a Lilo apresentava 39,4ºC, que poderia estar apenas associado à excitação, dado que o exame físico não revelou outras alterações. Foram agendados controlos mensais. Num terceiro acompanhamento face à evolução clínica estável, manteve-se o plano de tratamento, com uma redução da corticoterapia (prednisolona 1,08 mg/kg dia PO). No último controlo, a CRP, apesar de dentro do intervalo de referência, aumentou (8,0mg/L; ref: 0-12), no entanto, durante a anamnese percebeu-se que os tutores não foram rigorosos na administração da medicação instituída. Face a esta situação, decidiu-se manter a dosagem de prednisolona e os tutores foram alertados para a importância de cumprir com máximo rigor o plano terapeutico. O aumento da CRP no decorrer do tratamento de MARE pode ser justificado pela persistência de atividade inflamatória residual, em que, mesmo com tratamento imunossupressor, pode haver inflamação residual subclínica; a produção de IL6 e IL-1β, principais reguladores da CRP, mantém níveis ligeiramente elevados da proteína, mesmo com o controle clínico da doença [8]. Flutuações normais da resolução da inflamação, sem necessariamente indicar recaída da doença, uma vez que o sistema imune ajusta progressivamente a resposta inflamatória à imunossupressão; resposta a estímulos secundários como stress, infeções subclínicas ou vacinação; a CRP é um marcador sensível, mas pouco específico, e pode sofrer variações mesmo em processos inflamatórios não relacionados com a doença primária [9]. Referências bibliográficas: 1. Platt, S., & Freeman, AC. (2013). Neck and back pain. In Platt S, Olby N (Eds.). BSAVA Manual of Canine and Feline Neurology (4.ª ed., pp: 252-266). 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Hemograma da Lilo na consulta de urgência Parâmetro Resultado Intervalo de referência Leucócitos (109/L) 22,80 6,0-17,0 Neutrófilos (109/L) 18,405 3,62-11,32 Neutrófilo (%) 80,72 52,0-81,0 Eosinófilo (109/L) 0,123 0,04-1,56 Eosinófilo (%) 0,54 0,50-10,00 Linfócitos (109/L) 1,614 0,83-4,69 Linfócitos (%) 7,08 12,0-33,0 Monócitos (109/L) 2,631 0,14-1,97 Monócitos (%) 11,54 2,0-13,0 Eritrócitos (1012/L) 5,78 5,10-8,50 Hemoglobina (g/dL) 13,1 11,0-19,0 MCV (fL) 58,6 60,0-78,0 MCH (pg) 22,6 21,0-28,0 MCHC (g(dL) 38,7 30,0-38,0 Hematócrito (%) 33,8 36,0-56,0 Plaquetas ((109/L) 210 117-460 MPV (fL) 10,6 5,0-15,0 Tabela 3. Ionograma da Lilo no dia seguinte à consulta de urgência Parâmetro Resultado Intervalo de referência Na (mEq/L) 145 141-152 K (mEq/L) 3,4 3,8-5,0 Cl (mEq/L) 109 102-117 Tabela 3. Ionograma da Lilo no dia seguinte à consulta de urgência Tabela 2. Painel bioquímico sérico da Lilo na consulta de urgência Parâmetro Resultado Intervalo de referência Na (mEq/L) 145 141-152 K (mEq/L) 3,4 3,8-5,0 Cl (mEq/L) 109 102-117 Tabela 3. Ionograma da Lilo no dia seguinte à consulta de urgência Parâmetro Resultado Intervalo de referência TP (g/dL) 6,9 5,0-7,2 ALB (g/dL) 3,2 2,6-4,0 ALP (U/dL) 171 13-83 GLU (mg/dL) 110 75-128 ALT (U/L) 26 17-78 CRE (mg/dL) 0,34 0,40-1,40 BUN (mg/dL) 9,8 9,2-29,2 Parâmetro Resultado Intervalo de referência Na (mEq/L) 145 141-152 K (mEq/L) 3,4 3,8-5,0 Cl (mEq/L) 109 102-117 Tabela 4. Principais causas de dor cervical [2] Estrutura anatómica envolvida Causas Músculo Lesão/ traumatismo, miosite (imune ou infeciosa) Osso Fratura, discoespondilite, luxação, neoplasia, osteomielite vertebral Articulação Doença articular degenerativa (osteoartrite), poliartrite (imune ou infeciosa) Raiz nervosa Compressão (secundária a disco, quistos perineurais, tecido fibroso ou tumor), neoplasia Meninge Compressão/ tração (quistos sinoviais, prolapso do disco, instabilidade atlantoaxial), inflamação (imune ou infeciosa), neoplasia Cérebro Lesão em massa (inflamação ou neoplasia) Caso clínico nº5: Urinário – FLUTD obstrutivo Caracterização do doente: O Sal era um gato, esterilizado, europeu comum, de cor branca e amarela, 12 anos e 6,650kg. Motivo da consulta: O animal apresentou-se em consulta de urgência por incapacidade de urinar nas últimas horas. Inicialmente, deslocava-se com maior frequência do que o habitual à caixa de areia, produzindo pequenos volumes de urina e apresentava vocalizações durante a micção. Após algumas horas, deixou de urinar completamente. O apetite tinha diminuído consideravelmente nas últimas 24 horas. História clínica: O Sal era um gato com as vacinas e a desparasitação interna desatualizados, mas a desparasitação externa em dia. Era um gato exclusivamente de interior (apartamento), sem contacto com outros animais. Não apresentava historial cirúrgico relevante, exceto a esterilização. Não tinha outro historial médico nem comorbilidades, salvo no ano passado que teve um episódio não obstrutivo de cistite e cristalúria (estruvite). Aquando do referido episódio, o médico veterinário recomendou trocar a ração fisiológica para Advance® Urinary, ração seca que mantinha até à consulta. Não foram realizados controlos médico-veterinário subsequentes relativos à cistite e à cristalúria. A tutora implementou medidas para aumentar a ingestão de água, incluindo a utilização de uma fonte e a hidratação da ração seca. O Sal tinha sempre água à disposição e, no dia da consulta de urgência, não estava sob qualquer medicação. Não havia histórico de viagens recentes, hábito de ingestão de plantas ou objetos estranhos, nem acesso a lixo ou tóxicos. A tutora negou alterações no seu quotidiano. Exame físico geral: Atitude anormal em estação com cifose antiálgica; não foi avaliado em recúbito nem em movimento; estado mental normal; temperamento nervoso; CC de 7/9; movimentos respiratórios costoabdominais superficiais, rítmicos e regulares, com uma frequência respiratória de 30rpm; pulso forte, bilateral e simétrico com uma frequência de 180ppm; membranas rosadas, húmidas e brilhantes, com TRC <2 segundos; grau de desidratação <5%; temperatura de 38,oC, reflexo perianal presente, mucosa anal normal e termómetro sem fezes, sangue, muco ou parasitas; linfonodos e auscultação torácica sem alterações; dor à palpação do abdómen caudal, com bexiga distendida e tensa. Exame dirigido (urinário): Postura: cifose lombar antiálgica; rins na palpação sem alterações de tamanho, forma e consistência; bexiga muito cheia, com reação dolorosa na compressão. Técnica de compressão manual impossível de realizar. Lista de problemas: Disúria, estrangúria, polaquiúria, anúria, abdómen caudal doloroso, bexiga distendida tensa e dolorosa, hiporexia. Diagnósticos diferenciais: Doença do trato urinário inferior dos felinos (FLUTD) obstrutiva. Como etiologias possíveis do FLUTD devem ser consideradas: urolitíase, cistite idiopática felina (CIF), infeção do trato urinário (ITU) inferior, plugs uretrais, neoplasia do trato urinário inferior (carcinoma urotelial, carcinoma urotelial, carcinoma das células de transição, carcinoma das células escamosas, linfoma), desordens neurológicas (espasmo uretral, dissinergia reflexa, atonia do detrusor), anomalias anatómicas do trato urinário (estenose uretral, persistência do úraco), pielonefrite. Exames complementares: Hemograma: Sem alterações (Tabela D1); Bioquímica sérica: sem alterações; (Tabela D2) Ionograma: Sem alterações (Tabela D3); Urianálise: método de recolha: algaliação; Cor ligeiramente amarela e turbidez límpida; sedimento urinário sem alterações assinaláveis; Não existem dados da tira urinária ou densidade realizada aquando da urgência. A urianálise foi efetuada num laboratório externo ao hospital. Diagnóstico: FLUTD obstrutivo Terapêutica e evolução: O Sal ficou hospitalizado. Foi colocado um cateter endovenoso e iniciada a fluidoterapia com Lactato de Ringer com uma taxa de manutenção (15ml/h). Administrou- se buprenorfina (0,2mg/kg IV) para promover a analgesia e um relaxante muscular, diazepam (0,3mg/kg IV), e indução anestésica com propofol (4mg/kg IV). Foi algaliado com alguma dificuldade. De seguida, recolheu-se urina para urianálise e enviou-se para laboratório externo. A algália foi acoplada a um sistema fechado de recolha de urina para quantificação do débito urinário e avaliação macroscópica da urina. O débito urinário foi avaliado diariamente a cada 8h com um valor médio de 2,4ml/kg/h. O Sal foi medicado com robenacoxib (2,0mg/kg IV SID), maropitan (2,0mg/kg IV SID), omeprazol (1,0mg/kg IV BID) e buprenorfina (0,02mg/kg IV TID). Durante o internamento manteve-se com o temperamento nervoso. 48h após o internamento, o Sal começou a urinar por fora da algália, levando à sua remoção. Recebeu alta condicionada com alfuzosina (2,5mg/ gato PO SID), robenacoxib (1,5mg/kg PO SID), Calmurofel® (L-triptofano, glucosamina, ácidos gordos ómega-3, extrato de Valeriana officinalis, N-acetil-D-glucosamina, condroitina e vitaminas do complexo B) (1cp PO SID). Durante essa noite, em casa, apresentou polaquiuria e a urina amarela acastanhada de odor intenso, regressando ao HVP na manhã seguinte, novamente obstruído. Os parâmetros renais e hemograma mantinham-se dentro dos valores de referência. Procedeu-se a nova algaliação e realizou-se cultura urinária - isolou-se Escherichia coli, suscetível a, entre outros antibióticos, amoxicilina + ácido clavulânico. Assim, adicionou-se antibioterapia com amoxicilina + ácido clavulânico (12,5 mg/kg IV TID). Durante essa noite, a algália ocluiu devido a cristais, não tendo sido possível restabelecer a sua patência. Por este motivo, a algália foi removida e aquando de nova tentativa de algaliação, encontrou- se um obstáculo na porção distal da uretra, responsável por obstrução completa que tornou o procedimento inviável. Assim, optou-se pela realização de uretrostomia (Figura D1). Durante a cirurgia removeram-se múltiplos urólitos esféricos de pequenas dimensões, sem necessidade de recorrer a cistotomia. Os urólitos foram enviados para avaliação microscópica que revelaram cálculos com aspeto duro e irregular, com dimensão de 1mm e peso de 5mg e composição de oxalato de cálcio monohidratado. O Sal permaneceu internado por 3 dias para tratamento sintomático e controlo de dor. Teve alta com amoxicilina + ácido clavulânico (12,5mg/kg PO BID), robenacoxib (2,0mg/kg SID PO) e alfuzosina (2,5mg/ gato PO SID). Acompanhamento: O Sal realizou controlos pós-cirúrgicos e manteve-se a urinar sem dificuldades. O processo de cicatrização decorreu dentro da normalidade, não tendo apresentado complicações ou sequelas (figura D3). Recomendou-se manter a dieta de prevenção (Royal Canin® Urinary S/O), os restantes cuidados multimodais e controlos periódicos. Discussão: A FLUTD (Feline Lower Urinary Tract Disease) é descrita como uma patologia das vias urinárias inferiores dos felinos caracterizada por inflamação e manifestando-se através de sinais tais como disúria, estrangúria, polaquiúria, periúria, hematúria, lambedura excessiva da região genital e, em casos obstrutivos, incapacidade de urinar acompanhada de distensão vesical dolorosa e potenciais sinais sistémicos (letargia, vómitos, anorexia) [1]. As causas de FLUTD incluem, mais frequentemente, a CIF, seguida de urolitíase, infeções do trato urinário (ITU), neoplasia vesical, malformações anatómicas e alterações funcionais da bexiga. Cerca de ⅔ dos gatos com idade inferior a 10 anos que apresentam sinais urinários inferiores são diagnosticados com CIF [1,2]. Adicionalmente, diversas etiologias de FLUTD podem levar ao desenvolvimento de obstrução uretral, que ocorre predominantemente na porção distal da uretra felina. Entre essas causas, destacam-se os plugs uretrais secundários à cistite idiopática felina (CIF), urólitos, estenoses, e, com menor frequência, neoplasias, uretrite granulomatosa e corpos estranhos uretrais [1]. Em alguns casos, quando não se identifica uma causa estrutural para a obstrução uretral, acredita-se que esta possa resultar de espasmos da musculatura uretral ou edema, configurando uma obstrução uretral funcional [1,2]. Não se conhece a razão pela qual se formam plugs uretrais, mas estima-se que a proteinúria que ocorre durante a inflamação aumente o pH urinário, potenciando a precipitação de cristais de estruvite, os quais podem ser incorporados na matriz proteica dos plug uretrais [1,3]. Cerca de 20% dos gatos com FLUTD apresentam urolitíase, sendo os cálculos de estruvite e oxalato de cálcio os mais frequentemente identificados [3]. No caso do Sal, foram identificados cristais de estruvite no episódio pregresso e, neste episódio, apesar de a urianálise não ter identificado cristais, foi diagnosticado urolitíase por oxalato de cálcio. Esta história clínica sugere uma possível associação entre o uso prolongado de dieta acidificante e a alteração no tipo de cristais urinários observados neste episódio. Inicialmente, o Sal apresentou um episódio de cristalúria por estruvite, condição associada a urina alcalina e, apesar de não ter tido acompanhamento, manteve-se aparentemente estável com Advance® Urinary - ração formulada para acidificar o pH urinário. No entanto, a manutenção prolongada com este tipo de alimentação, mesmo após a resolução do quadro inicial, pode ter contribuído para a acidificação crónica da urina, fator de risco reconhecido para a formação de cristais de oxalato de cálcio, os quais se formam preferencialmente em meio ácido e não são passíveis de dissolução através de dieta. Estudos prévios demonstram que essa mudança no padrão urolítico, de estruvite para oxalato de cálcio, tem sido observada com maior frequência em felinos submetidos continuamente a dietas acidificantes. Assim, o episódio atual de obstrução por oxalato de cálcio pode estar associado à estratégia dietética adotada anteriormente, destacando a importância da reavaliação periódica da dieta em pacientes com histórico de doença do trato urinário inferior [10]. Além disso, a obstrução uretral também pode ser causada por estenose uretral devido a obstruções recorrentes ou algaliações repetidas [1]. Os fatores de risco para o desenvolvimento de FLUTD incluem: excesso de peso, reduzida atividade física, gatos de interior, pouca ingestão de água, dieta exclusiva à base de ração seca e episódios de stress, como conflitos com outros animais, caixas de areia sujas ou insuficientes, mudanças de casa ou alterações na rotina [1,2]. O diagnóstico de FLUTD baseia-se na anamnese e na realização de um exame físico completo. Os gatos obstruídos manifestam frequentemente disúria, muitas vezes evidenciada por vocalizações, polaquiúria, periúria e/ou hematúria, tendo sido identificados alguns destes sinais no Sal [1,3]. Através da palpação da abdominal, é possível detetar uma bexiga distendida e dolorosa, sendo a obstrução urinária uma emergência médica. Como meios complementares de diagnóstico, deve realizar-se urianálise, incluindo tira urinária, medição da densidade urinária no refratómetro e sedimento urinário [1,3]. A presença de cristais na urina pode indicar a composição dos urólitos; contudo, em alguns casos de urolitíase, a cristalúria pode estar ausente ou sua composição pode diferir da dos cálculos formados [2, 3]. Apesar da urianálise do Sal não apresentar alterações relevantes, a urina é frequentemente concentrada e alcalina, podendo ainda ocorrer proteinúria, hematúria e cristalúria. As culturas urinárias não são realizadas de forma rotineira, no entanto, na segunda vez em que o Sal foi algaliado foi efetuada, uma vez que a urina apresentava coloração amarela acastanhada e um odor intenso. A radiografia abdominal é uma ferramenta diagnóstica importante, permitindo identificar urólitos radiopacos vesicais e uretrais, como cálculos de estruvite e oxalato de cálcio, o que nem sempre é possível na ecografia [1, 2, 3]. A ecografia abdominal, embora não permita visualizar a uretra distal, pode ser utilizada para avaliar urólitos vesicais e a espessura da parede da bexiga [1]. Em casos de FLUTD recorrente, deve realizar-se uretrocistografia contrastada ou cistoscopia para descartar outras patologias [1, 2, 3]. Principalmente em gatos obstruídos, a realização de hemograma e painel bioquímico sérico são importantes para avaliar se existe azotémia pós-renal, hipercalcemia, hipercalemia, acidose metabólica ou outros desequilíbrios eletróliticos ou ácido base [3]. O ionograma e os parâmetros renais devem ser repetidos, pelo menos, a cada 48 horas [1,3]. Quando o Sal chegou às urgências, encontrava-se obstruído, e, ao longo do internamento, foram registadas alterações compatíveis com cristalúria/ urolitíase. No entanto, na urianálise não foram detetados cristais. Assim, é plausível suspeitar que os cristais se tenham dissolvido durante o transporte para o laboratório, reforçando a importância de avaliar o sedimento urinário até 8 horas após a recolha de urina [4]. A urianálise é uma ferramenta diagnóstica essencial na medicina veterinária, particularmente na avaliação de alterações renais e urinárias. Contudo, apresenta limitações significativas que podem condicionar a interpretação clínica. A variabilidade nos métodos de colheita (micção espontânea, cistocentese, algaliação) pode influenciar os resultados, especialmente na deteção bacteriana ou celular. Adicionalmente, uma conservação inadequada da amostra pode alterar parâmetros como o pH, a densidade e a presença de elementos celulares. As tiras reagentes, embora amplamente utilizadas, têm sensibilidade limitada, detetando preferencialmente albumina e sendo suscetíveis a interferências por pigmentos urinários ou pH extremo. Por outro lado, o exame microscópico do sedimento apresenta variabilidade interobservador considerável, o que pode comprometer a confiabilidade na identificação de elementos celulares e cristais. Desta forma, a urianálise deve ser sempre interpretada em conjunto com dados clínicos e laboratoriais complementares, de modo a assegurar uma maior precisão diagnóstica [9]. Na abordagem terapêutica em situação de emergência, é fundamental avaliar as alterações sistémicas e estabilizar o animal, com fluidoterapia endovenosa, permitindo a correção de alterações hidro-eletrolíticas e desequilíbrios ácido-base. Após estabilização e sedação do paciente, deve-se proceder à correção da obstrução, através da cateterização urinária de forma assética e atraumática, lubrificando a ponta da algália e usando o menor calibre possível [1, 5]. A cistocentese descompressiva é um procedimento controverso: embora classicamente considerado contra-indicado, alguns autores defendem que permite uma rápida diminuição da pressão intravesical, facilitando r a cateterização urinária e retro-hidropropulsão, recorrendo a menor sedação e permitindo a obtenção de uma amostra assética, uma vez que a rutura vesical é muito rara [5,6]. Durante a algaliação, recomenda-se a utilização de flushs com soro salino estéril, sendo preferível à utilização de força, permitindo a dilatação da uretra e destruição ou retropropulção para a bexiga do que estiver a causar a obstrução urinária [1,3,7]. Após a algaliação é importante o controlo de dor e estabilização do paciente. Assim, devem ser administrados analgésicos como a buprenorfina para potencializar o conforto do animal, α1-agonistas para tentar diminuir os espasmos uretrais, como a prazosina [1, 3]. Posteriormente à desobstrução deve ser avaliado o débito urinário e a densidade urinária a cada 4h, avaliando a diurese pós-obstrutiva (ref: >2ml/kg/h) que pode persistir até 3 a 4 dias após a cateterização, sendo difícil distinguir da diurese associada à fluidoterapia, sendo também por este motivo importante monitorizar o potássio para detetar precocemente possíveis hipocalémias [3]. Em alguns casos, pode existir a indicação para complementar o tratamento com procedimentos cirúrgicos, nomeadamente cistolitotomia ou uretrostomia. No caso do Sal, apesar de inicialmente ter sido tentado o maneio médico, verificou-se uma obstrução completa impossível de resolver com recurso a algaliação, a terapêutica selecionada não pode ser mantida. Desta forma, o Sal foi encaminhado para uretrostomia peniana. Esta cirurgia melhora significativamente a vida dos gatos afetados, apresentando uma baixa taxa de recorrência de sinais clínicos [7]. O procedimento consiste na criação de uma abertura permanente na uretra, permitindo a drenagem urinária diretamente para o exterior do corpo. A principal vantagem é a resolução imediata da obstrução, prevenindo complicações graves como insuficiência renal aguda. Para gatos com obstruções recorrentes, a uretrostomia perineal é eficaz, pois permite a eliminação da urina sem interferência dos cristais [8]. Entre as complicações mais comuns deste procedimento estão a ITU, uma vez que a nova abertura uretral pode facilitar a ascensão de bactérias, aumentando a incidência de infeções pós-operatórias em aproximadamente 25% a 30% dos casos [8]. Outra complicação frequente é a estenose uretral, resultante da formação de tecido cicatricial, que pode levar ao estreitamento da uretra e dificultar a micção. Além disso, pode ocorrer hemorragia, especialmente no pós-operatório imediato, devido à vascularização da região perineal. Embora comum, geralmente é autolimitada e controlada com cuidados adequados. A incontinência urinária, embora menos frequente, pode ocorrer se houver danos dos nervos ou esfíncteres uretrais durante a cirurgia. Adicionalmente, pode verificar-se a deiscência de sutura, especialmente se o gato lamber excessivamente a área ou houver infeção local [8]. Em alguns casos, também se observa dermatite perineal também, devido à irritação da pele ao redor do local cirúrgico devido ao contacto frequente com a urina. Para minimizar esses riscos, recomenda-se um acompanhamento atento, uso de colar isabelino e manutenção da higiene adequada. Com os devidos cuidados, a uretrostomia perineal apresenta um bom prognóstico de FLUTD obstrutivo [8]. No entanto, a cirurgia não resolve a causa subjacente do problema, ou seja, os cristais de oxalato de cálcio continuam a formar-se, podendo causar novas obstruções se a dieta ou outros cuidados não forem ajustados [8]. A prevenção da formação destes cristais de oxalato de cálcio em gatos requer uma abordagem multifatorial, focada principalmente na redução da saturação de cálcio e oxalato na urina. Ajuste alimentar, com recurso a dietas com baixo teor de cálcio e oxalato ajudam a reduzir a formação de cristais, incentivar o consumo de água com o uso de fontes, ração húmida ou hidratação de ração seca. Além disso, dietas alcalinizantes, que aumentam o pH urinário, podem prevenir a formação de cristais, já que os cristais de oxalato de cálcio se formam mais facilmente em urina ácida. O citrato de potássio também pode ser útil, pois liga-se ao cálcio evitando a formação de cristais, estando frequentemente presente em rações e suplementos específicos para a prevenção de cálculos de oxalato de cálcio. Por outro lado, é necessário controlar o peso corporal e reduzir o stress, além de um controlo apertado por parte do médico veterinário [11]. Em resumo, a prevenção da formação de cristais de oxalato de cálcio requer uma abordagem integrada que envolva ajustes dietéticos, hidratação adequada, monitoramento constante e controle de fatores ambientais. Estas práticas, quando bem implementadas, podem reduzir significativamente o risco de obstrução urinária e outros problemas relacionados [11]. A abordagem profilática deve incluir a estimulação da ingestão de água, o que pode ser alcançada por meio da disponibilização de múltiplas fontes de água e da incorporação de dietas húmidas na alimentação. Esta estratégia visa evitar a formação de urina concentrada, um fator predisponente para o desenvolvimento de urolitíase. Além disso, a redução do stress é essencial, uma vez que pode influenciar a fisiopatologia da doença. Nesse contexto, as estratégias propostas pelo Multimodal Environmental Modification (MEMO) são amplamente recomendadas, pois envolvem a reeducação do tutor e a implementação de modificações no ambiente físico do gato, bem como ajustes na dieta e nas interações sociais intra e interespécie. O objetivo dessas estratégias é proporcionar: um local seguro; múltiplos recursos ambientais distribuídos e acessíveis, incluindo pontos de alimentação, água, liteiras, áreas de lazer e descanso elevadas, esconderijos e arranhadores; oportunidades para a expressão do comportamento predatório; interações sociais positivas entre humanos e gatos; e um ambiente que respeite a importância do olfato felino. Adicionalmente, o uso de feromonas sintéticas felinas tem demonstrado eficácia na redução da ansiedade, diminuindo a frequência e duração dos episódios clínicos, pelo que constitui uma opção terapêutica viável. A FLUTD pode ter múltiplas etiologias, muitas das quais apresentam manifestações clínicas semelhantes. Assim, um diagnóstico criterioso e sistemático é fundamental para a identificar a causa subjacente, permitindo uma abordagem terapêutica e preventiva adequada. Desta forma, o maneio correto da condição pode contribuir significativamente para a longevidade e qualidade de vida do gato. [2] Referências bibliográficas: 1. Nelson, R. W., & Couto, C. G. (2019). Small Animal Internal Medicine (6ª ed.). Elsevier - Health Sciences Division. 2. Taylor, S., Boysen, S., Buffington, T., Chalhoub, S., Defauw, P., Delgado, M. M., Gunn-Moore, D., & Korman, R. (2025). 2025 iCatCare consensus guidelines on the diagnosis and management of lower urinary tract diseases in cats. 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Hemograma do Sal na consulta de urgência Parâmetro Resultado Intervalo de referência Leucócitos (109/L) 8,83 5,5-19,5 Neutrófilos (109/L) 6,44 2,3-12,58 Neutrófilo (%) 72,88 38,0-80,0 Eosinófilo (109/L) 0,95 0,06-1,93 Eosinófilo (%) 10,78 1,0-11,0 Linfócitos (109/L) 0,852 0,730-7,860 Linfócitos (%) 9,66 12,00-45,00 Monócitos (109/L) 0,581 0,070-1,250 Monócitos (%) 6,58 1,00-7,00 Eritrócitos (1012/L) 6,30 4,60-12,00 Hemoglobina (g/dL) 9,2 9,0-15,3 MCV (fL) 43,7 39,0-53,0 MCH (pg) 14,6 13,0-20,0 MCHC (g(dL) 33,4 29,0-37,0 Hematócrito (%) 27,5 26,0-49,0 Plaquetas ((109/L) 423 100-528 MPV (fL) 12,5 8,1-13,9 Tabela 2. Painel bioquímico sérico do Sal na consulta de urgência Parâmetro Resultado Intervalo de referência TP (g/dL) 7,3 5,7-7,8 ALB (g/dL) 2,6 2,3-3,5 ALP (U/dL) 27 9-53 GLU (mg/dL) 126 71-148 ALT (U/L) 80 22-84 CRE (mg/dL) 1,37 0,80-1,80 BUN (mg/dL) 34,3 17,6-32,8 Tabela 3. Ionograma do Sal na consulta de urgência Parâmetro Resultado Intervalo de referência Na (mEq/L) 155 147-156 K (mEq/L) 3,7 3,4-4,6 Cl (mEq/L) 117 107-120 Figura 1 Sutura da uretra ao períneo, após individualização e incisão, originando a nova abertura uretral. Imagem gentilmente cedida pelo Hospital Veterinário do Porto Figura 2 Evolução do processo de cicatrização do Sal; A, B e C, 2 dias, 14 dias e 2 meses, respetivamente, após o procedimento cirúrgico. Imagens gentilmente cedidas pelo Hospital Veterinário do Porto. Medicina e Cirurgia de Animais de Companhia Inês Marisa Pinheiro Moreira ICBAS