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Ilda Figueiredo (Oliveira do Bairro, Aveiro, 1948)
3 filhos
Ano de entrada na FEP: 1967
Deputada do Parlamento Europeu |
Quem é a Ilda Figueiredo?
Fui para a UP, para a FEP, no ano lectivo de 1967/68. Na altura, vivia em Aveiro. Era filha de pais camponeses que, nessa época, não tinham dinheiro para me pagar uma deslocação para o Porto, para poder estudar na FEP. Os meus pais consideraram, por isso, que eu deveria ser professora primária. Em Aveiro havia uma escola normal, assim se dizia na época, e portanto foi o curso que obtive, aos 17 anos. Mas sempre com a ideia clara que queria ir para a FEP. Perseguindo esse objectivo, estudei sozinha o 6° e 7° anos do liceu. Enquanto estava no magistério primário estudava, simultaneamente, para professora primária e para completar o liceu. Depois fui trabalhar como professora, dei aulas durante um ano, e fiz a matemática. Em 1967/68, com 18 anos, entrei na FEP. Nessa mesma altura casei, precisamente no dia em que fiz 19 anos, a 30 de Outubro. Durante um ano fazia as viagens diárias de Aveiro para o Porto, de comboio. Até que eu e o meu marido decidimos vir viver para Vila Nova de Gaia. Comecei a dar aulas como professora primária, em Vila Nova de Gaia, simultaneamente com os estudos na Faculdade como aluna voluntária. Nessa época, ser aluna voluntária era muito complicado. Estamos a falar dos anos de 1968 e seguintes. Este estatuto significava ter que fazer frequências trimestrais a todas as disciplinas, passar em todas elas, para poder fazer os exames. Isto não acontecia com os alunos ordinários (os normais). Tínhamos um estatuto muito difícil. Éramos estudantes trabalhadores mas esse estatuto, na realidade, não existia. Éramos obrigados a frequentar as aulas práticas. Se faltássemos, reprovávamos. O estatuto era muito difícil e poucos alunos conseguiam resistir até ao final. Como era professora primária e dava aulas no ensino oficial, o fascismo impedia-me de usar a justificação de fazer exames, para faltar à escola primária. Não podia usar essa justificação porque a falta não me era justificada.
Como era o ambiente na FEP?
Com este estatuto que tinha, e pelo facto de ser professora primária, com aulas ora de manhã, ora de tarde, só ia à Faculdade uma parte do dia. Sendo certo que era fundamental ir às aulas práticas, que eram obrigatórias. De acordo com isso, ia à Faculdade, mas menos tempo comparativamente com os restantes colegas, por trabalhar. O meu relacionamento com os meus colegas era muito bom. Indispensável, aliás, para conseguir fazer o curso, trabalhando e tendo os meus dois filhos - os dois mais velhos nasceram enquanto era aluna na Faculdade. Como não podia ir à maior parte das aulas teóricas eram as minhas colegas que me passavam os apontamentos. No Café Piolho e no Café Universidade fazíamos a troca dos apontamentos e conversávamos um pouco. Ali foi também a minha universidade. Foi para mim fundamental essa solidariedade que existiu durante todo esse tempo. Recordo-me de colegas como a Isabel, a Rosa, o Claudemiro, a Antonieta … Recordo-me desse grande apoio de colegas, que foi fundamental. Era-me impossível saber o que se passava nas aulas sem a ajuda delas. Da parte de alguns professores, sobretudo dos mais novos, dos assistentes, também houve alguma compreensão pois reconheciam a minha situação. Recordo-me perfeitamente da solidariedade do Professor Jesus, que até hoje não esqueço.
O que gostava mais e o que gostava menos na FEP?
Aspectos negativos… Foi sobretudo o clima que se vivia. Era um clima de opressão. Recordo-me de vir da escola primária, depois das aulas, dirigir-me para a Faculdade e estar tudo ocupado pela polícia. Recordo-me perfeitamente de um episódio. Estava grávida do meu segundo filho – que, aliás, é também economista, formado pela FEP – estava no final da gravidez e a polícia decidiu que eu não podia passar. Via-se alguma perseguição. Insisti em passar e só não fui agredida porque estava grávida e lá me deram indicações expressas para sair. Dirigi-me então para o Piolho, mas vi alguns dos meus colegas a serem levados na carrinha para a prisão. Foram momentos duros ao ver colegas serem agredidos e presos. Estávamos em 1971, e claro que este clima duro se vivia também dentro da faculdade. No último ano – acabei o curso em 1973 – na disciplina de Teorias Económicas, lembro-me de alguns de nós termos o desejo de estudar a teoria Marxista e isso ser, obviamente, proibido na Faculdade. Nos Leões, onde funcionava a FEP, havia uma excelente biblioteca, que acabou por sofrer um incêndio. Lá, estranhamente, alguns livros escapavam à censura, como, por exemplo, obras de comparação entre a teoria Keynesiana e a teoria Marxista, baseadas em livros publicados em Portugal. Recordo-me perfeitamente de uma livraria, em Coimbra que tinha livros idênticos, comprei um de Lenine que só tinha o nome original – Vladimir I. Ulianov – e por isso tinha escapado à censura. Alguns dos que conseguíamos obter eram publicados clandestinamente. A minha ligação ao PCP começou em 1974, como militante. As minhas ligações a pessoas comunistas, contudo, vinham já de 1972. Imediatamente após a queda do fascismo inscrevo-me no PCP, mais precisamente, em Maio de 1974. Mas, tal como estava a dizer, nessa disciplina de Teoria Económicas, eu e alguns colegas decidimos fazer um trabalho tendo por base alguma teoria Marxista. Eu fiz um trabalho sobre a teoria Marxista e a teoria Keynesiana. O professor era o Dr. Conceição Nunes, que admitiu que fizéssemos um trabalho sobre o assunto que quiséssemos. Creio que nunca lhe passou pela cabeça que iríamos escolher este tema, pois não era dado nas aulas. Para ele foi um choque. Os exames orais eram individuais. O meu trabalho não era muito profundo e era feito na base de uma aprendizagem pessoal, e fazer isto foi uma grande ousadia. Não o refiro apenas como um desafio ao fascismo, mas sob o ponto de vista teórico e intelectual. Eu, de facto, não tinha bases para fazer um artigo profundo. Quando chego à oral o professor pergunta-me qual o trabalho que tinha feito. Eu digo-lhe: “Tem aí. É a comparação entre a teoria Keynesiana e a teoria Marxista”. Ele só me respondeu: “Ah! Está bem, então vá-se embora”. E não me fez a prova oral. Fiquei com os 15 valores da prova escrita. À luz dessa época foi o que melhor conseguiu fazer. Com esse gesto, comigo e com outras colegas, ele não nos impediu de fazer o trabalho. Considerou um desafio e não fez o debate oral. Tentou fazer crer que era um homem liberal, mas, evidentemente, o seu liberalismo tinha limitações. A FEP era uma faculdade muito fechada e regida por um homem do fascismo, o Professor Seabra. Claro que, nos últimos anos, com as lutas estudantis, deuse alguma abertura, mas era uma abertura muito limitada. Esta e outras acções provaram essas limitações, demonstrando que a FEP era fechada a ideias e acções que não fossem do sistema. Num ou noutro caso, alguns professores apareciam como que fugindo a esse processo, mas com limitações. Enfim, são as contradições da época.
Que conselhos dá aos mais novos e aos que estão agora a terminar o seu curso na FEP?
Há sempre uma enorme diferença entre a vida de estudante e a vida prática. É depois, também com a experiência da vida, que vamos definindo o nosso caminho. Embora no momento da minha formação na FEP tenha vivido um processo muito difícil, de trabalho e estudo, também teve um lado muito real, o do mundo dos livros que lia. Penso que qualquer curso deve ter essa procura de ligação à realidade. Também fui professora durante muitos anos, e sei como é difícil trazer para a escola a realidade que se vive lá fora. Como fazer a melhor ligação entre a teoria e a prática para que não seja tão chocante, aquando da saída da faculdade, a ligação ao mundo real. A minha experiência de vida permitiu-me essa ligação. A FEP deu-me um conjunto de instrumentos teóricos que permitiu aprofundar o conhecimento da realidade. Eu, que sou comunista desde 1974, e na FEP nunca estudei as teorias marxistas, mas consegui aí as bases para a minha formação. Quando comecei a estudar o marxismo, não o fiz como aluna da faculdade, mas procurei incorporar isso no meu próprio estudo. Deveremos ter sempre uma grande abertura de pensamento para as diferentes teorias e áreas do conhecimento. É uma base importante para qualquer aluno, assim como o é formar um espírito crítico relativamente a tudo o que a própria faculdade lhe dá. Eu procurei fazê-lo, apesar das limitações da época. Incorporar o meu estudo pessoal nos conhecimentos fundamentais adquiridos na faculdade foi importante para entender o que o ensino superior não dava. A FEP deu-me sobretudo os instrumentos necessários para poder fazer essa incorporação teórica de outras teorias, de outras análises não transmitidas na sala de aula. Terminei o curso em 1973, ou seja, frequentei a faculdade em período fascista. Mas estudei a teoria Marxista com base nos instrumentos de uma faculdade onde nunca se deu teoria Marxista. É o melhor elogio que posso fazer ao curso que tirei, apesar das suas limitações. Só para terminar, gostaria de referir que fui técnica economista de sindicatos e contactei com muitas empresas, sobretudo na área têxtil. Ora quando, após o 25 de Abril de 1974, houve certa desconfiança em relação à FEP, alguns patrões perguntavam-me quando tinha tirado o curso, pensando que o tinha feito no período pós-revolucionário, para tentarem desvalorizar as análises que eu fazia. Calavam-se sempre que lhes dizia que tinha terminado o curso em Junho de 1973. Não entendiam as minhas posições, com uma formação da FEP durante aquele período fascista.
Entrevista realizada por Pedro Quelhas Brito